“A água é molhada” e “o fogo queima” são obviedades que aparecem no poema “Gods of the Copybook Headings” (“Deuses dos Cabeçalhos”) do Nobel de literatura Rudyard Kipling. Tais expressões ficavam no cabeçalho dos livros de caligrafia das escolas inglesas. As crianças deviam copiá-las para exercitar a letra cursiva e, como as frases eram platitudes, elas não as distraíam da finalidade do exercício.
Para um economista, uma obviedade digna de ocupar o cabeçalho dos livros de caligrafia é “a quantidade demandada aumenta quando o preço cai”. Apesar de óbvia, a relação entre preço e quantidade demandada foi ignorada por pelo menos cinco ministros do STF que votaram em favor da descriminalização das drogas, tema que voltou à pauta.
Assim como com gasolina ou picanha, a quantidade demandada por drogas aumenta quando o preço cai. Ocorre que para o usuário de drogas o preço de consumi-las não é apenas aquilo que ele paga ao traficante. Embutido no quanto alguém está disposto a pagar está o risco de ser pego consumindo e as sanções resultantes. A descriminalização das drogas reduz o seu preço total e, portanto, aumenta a sua demanda. Essa parece ser a experiência de Portugal, que teve um aumento na taxa de consumo de drogas ilícitas entre 2001 e 2022.
Além disso, regras que excluem ilicitude com base na quantidade de entorpecente em posse do indivíduo acabam reduzindo o custo de distribuição das drogas no varejo, afinal, tais regras serão exploradas pelo crime organizado para vendê-las sem medo da polícia. A redução nos custos somada ao incremento na demanda aumenta os lucros dos produtores e torna atraente a entrada de novos empreendedores. Estes irão brigar por uma fatia de mercado, gerando mais violência nas comunidades.
Em seu poema, Kipling denuncia os novos deuses do progresso, que, de tempos em tempos, aparecem para negar verdades patentes sobre a ordem social. No entanto, “tão certo como o fogo queima”, o bom senso dos deuses do cabeçalho retorna, mas, até lá, o dano causado pelos novos deuses pode ser grande demais.
[Enviei essa nota para o espaço de opinião do jornal Zero Hora na segunda-feira. Antes que ele fique datada, decido colocá-la aqui.]