[RUGINDO, distante, talvez o oceano. Mais alto agora, não ondas, mas o BURBURINHO DE VOZES. Ainda mais ALTO, ensurdecedor, enquanto a tela se ilumina, o relampejar de flashes de câmeras REVELA... Um PUNHO ENLUVADO – EM CLOSE. Erguido em triunfo.]
[LOCUTOR (EM OFF): “E do grande estado de Nova Jersey, por decisão unânime, o vencedor do peso meio-pesado desta noite... Jim Braddock.”]
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INT. MADISON SQUARE GARDEN – NOVA YORK – 1928 – NOITE
Foi em uma noite de outono, em 30 de novembro de 1928 para ser mais preciso, que James J. Braddock derrotou “Tuffy” Griffiths, a sensação do momento e um forte candidato a disputa do cinturão de pesos pesados leves. A multidão vibrava com a vitória inesperada de Jim, e seu empresário Joe Gould já sonhava com a disputa pelo cinturão. Estando ali, naquele momento, era difícil imaginar que, em 1933, apenas seis anos depois da vitória em Maddison Square Garden, Jimmy anunciaria sua aposentadoria dos ringues e precisaria trabalhar como estivador nas docas em Nova Jersey para sustentar sua família. Mais difícil ainda era conceber a ideia de que dois anos depois de anunciar a aposentadoria, esse mesmo boxeador se tornaria o grande campeão mundial de pesos pesados.
É improvável que exista uma história de tamanha superação quanto a de James J Braddock, o protagonista do filme Cinderella Man (2005). O descendente de irlandeses nascido em Nova Jersey oscilava entre triunfos memoráveis e humilhantes derrotas. Em seu momento mais desesperador, desprestigiado no mundo do boxe e sem grandes qualificações profissionais, James viveu na pobreza extrema. No entanto, em 1935, o irlandês americano derrota Max Baer na disputa pelo título de campeão mundial dos pesos pesados.
Essa demonstração de superação e resiliência esportiva já seria suficiente para imortalizar Jimmy na história do esporte. No entanto, o que torna a biografia de James Braddock suis generis é sua sincronia com o drama que o povo americano experimentava àquela época, durante a maior crise econômica do século XX: A Grande Depressão.
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Existem muitas explicações para a Grande Depressão. Uma delas começa com a Inglaterra tentando reestabelecer a paridade entre a libra esterlina e o ouro, a qual fora quebrada excepcionalmente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Em 1924, Benjamin Strong, o então presidente do Banco Central americano, reduziu a taxa de juros dos Estados Unidos com o intuito de ajudar a Inglaterra. Essa redução aumentava o diferencial de juros entre os dois países, e isso fazia o ouro migrar da américa para a Grã-Bretanha, onde ele renderia mais e auxiliaria os britânicos a reestabelecerem o padrão-ouro vigente antes da guerra. Essa redução da taxa de juros também contribuiu para a bolha do mercado acionário americano1, a qual estoura em 1929, expondo o sistema bancário americano a uma crise de liquidez2. Essa crise desencadeia a falência em massa de bancos, provocando uma queda não antecipada de aproximadamente um terço da oferta de moeda na economia americana. Esse choque monetário negativo deprimiu a atividade econômica, criando a maior crise econômica do século XX.
A grande crise foi o que motivou John Maynard Keynes (1883-1946) a escrever um dos clássicos da macroeconomia do século XX, intitulado Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Nele, o economista desenvolveu sua explicação para o problema econômico da época: a grande capacidade ociosa existente dos países desenvolvidos, a qual resultava em um alto e persistente nível de desemprego. Grosso modo, a crise econômica para Keynes acontecia quando o gasto efetivo dos consumidores, empresários e governo era insuficiente para comprar todos os bens e serviços que haviam sido produzidos3. A chave para entender as causas e a soluções da crise passava por entender o comportamento da demanda. Não a demanda de um produto ou serviço, e sim uma ideia mais abstrata e abrangente de demanda, uma espécie de demanda total da economia. O gasto das famílias, o investimento dos empresários e o gasto do governo eram os principais componentes dessa “demanda total” e Keynes procurou explicá-los utilizando uma série de pressupostos comportamentais simples. A parte mais importante desse modelo de demanda era a parte do consumo. O gasto das famílias, ou consumo, era determinado por dois componentes: o primeiro deles era “consumo autônomo”, o qual não mudava conforme a conjuntura econômica (por isso “autônomo”), e o segundo correspondia uma fração constante da renda, ou seja, ele oscilava conforme a renda total. O consumo era a parte crucial do modelo de Keynes justamente porque é nele que está presente a simultaneidade: o consumo impacta a demanda agregada, a qual governa a renda total da economia e esta, por sua vez, impacta o consumo. Sabendo como o consumo muda com a renda, seria possível determinar totalmente a renda da economia para qualquer nível de gasto do governo ou de investimento.
A teoria, seu diagnóstico da crise e as prescrições sobre como sair dela dominaram o debate de política econômica da época, fazendo com que muitas pessoas considerassem Keynes o pai da macroeconomia. Contudo, como é frequente nessas questões, “muitas pessoas” estão erradas. Na verdade, a paternidade da macroeconomia pertence a Irving Fisher (1867 - 1947), pois foi ele que inventou o modelo sob o qual a macroeconomia moderna se sustenta. Muito antes de Keynes, Fisher, em The Rate of Interest (1907), já oferecia uma teoria sobre o comportamento das famílias em relação aos gastos com consumo. O modelo de Irving Fisher foi o precursor4 do que ficou conhecido como a Teoria da Renda Permanente, desenvolvida por Milton Friedman. Essa teoria foi particularmente importante para a macroeconomia moderna, pois ela oferecia uma descrição mais geral e consistente da relação entre a renda e o consumo do que aquela desenvolvida por Keynes.
Existem muitas maneiras de entender o que Fisher, Friedman e a economia ensinam sobre o comportamento dos gastos com consumo. A mais interessante delas é continuar lendo este ensaio, o qual usa a vida de James Braddock, o Homem Cinderela, como ilustração.
[Mas antes de falar sobre James Braddock, é importante entender um pouco sobre como funciona o boxe profissional. Se você já sabe, pode pular esta parte.]
Como funciona o boxe profissional
Os campeões mundiais de boxe não são decididos em campeonatos. As regras e regulamentos, as categorias de peso, o ranqueamento de atletas e os campeões dos cinturões são definidos pelas associações de boxe
5. O boxeador que deseja ser campeão precisa se destacar na multidão. Para isso, ele tem que não só vencer muitas vezes, mas também vencer atletas cada vez mais vitoriosos que o precedem em notoriedade. Uma vez que ele tenha batido em gente suficiente, uma oportunidade lhe é oferecida para lutar contra o campeão, o detentor do cinturão. Se ele vencer a luta, então haverá um novo campeão.
O processo todo envolve uma complexa economia que tem algumas figuras essenciais: o empresário do atleta, o promotor de lutas, a comissão de boxe e, é claro, o pugilista. Embora este último seja a condição necessária para a existência do esporte, ele depende do empresário, que tem a função de administrar sua carreira, promovendo lutas que sejam ao mesmo tempo relevantes o bastante para seu atleta se destacar, rentáveis do ponto de vista financeiro e, é claro, que ofereçam alguma chance de vitória. A rentabilidade, no entanto, depende do promotor de lutas. É ele quem organiza o evento pelo qual milhares de pessoas vão pagar ingresso para ver dois homens se espancarem. Finalmente, tudo isso é regulado pela comissão de boxe, a qual deve sancionar a luta.
O objetivo de todo pugilista profissional é chegar ao cinturão. Entre ele e o título estão outros pugilistas a serem vencidos. Se ele conseguir vencer de forma espetacular é ainda melhor, afinal é o espetáculo que vende ingressos e é isso que engorda o quanto se recebe por uma luta. Nocautes são melhores do que vitórias por decisão (que acontece quando os rounds terminam e os juízes precisam decidir). Empates, embora raros, acontecem. Do ponto de vista do espetáculo, a pior coisa que pode acontecer são lutas sem decisão que, em alguns casos, poderiam até tirar o dinheiro dos pugilistas. Portanto, se o boxeador quer uma chance de disputar o título, ele precisa vencer, preferencialmente por nocaute, evitar empates e lutas indefinidas.]
A carreira de Jimmy Braddock
“Guarde o que você ganhar.”6 Esse foi o conselho da mãe de Jimmy quando ele disse que seria um lutador de boxe profissional. O leitor perceberá que esse foi um excelente conselho ao aprender um pouco sobre a carreira de Jimmy. Em seu livro “Cinderella Man”, Jeremy Schaap conta detalhes da biografia do pugilista. A carreira profissional de Braddock começou em 1926, ano em que seu empresário Joe Gould arranjou impressionantes quinze lutas (três vezes mais do que um boxeador lutaria hoje em dia). Destas quinze, James venceu treze e empatou duas. Tendo um cartel de lutas razoável, em 1927, Jimmy faria sua estreia no Maddison Square Garden, em Nova York, contra George LaRocco em uma das lutas preliminares que antecediam a defesa do cinturão de pesos pesados. Braddock venceu por nocaute. Após mais quinze lutas, as quais ele venceu a maioria, empatou duas e as restantes não houve vencedor, ele termina o ano de 1927 enfrentando Joe Monte em uma luta de dez rounds que terminou em empate. Foi nessa luta que James Braddock quebrou a mão direita pela primeira vez. Para arrumá-la, eram necessários U$ 1.400, que estavam fora do alcance do boxeador. A solução foi continuar lutando, mesmo com a mão quebrada. Em 1928, ele faz sua próxima grande luta no Maddison Square Garden e consegue uma vitória usando sua desajeitada mão esquerda. Ainda em 1928, após algumas derrotas, empates e lutas sem decisão, Jimmy Consegue duas vitórias e uma delas particularmente importante. “Tuffy” Griffths era uma das estrelas em ascensão do boxe e a luta no Maddison Square Garden atraiu um público considerável. A vitória de Jimmy por nocaute rendeu a ele cerca de oito mil dólares, o que seria aproximadamente cento e cinquenta mil dólares em 2025. Finalmente, em 18 de julho de 1929, após uma derrota seguida de três vitórias por nocaute, ele tem a chance de disputar o título de campeão dos meio-pesados enfrentando Tommy Loughran. Jimmy é sumariamente derrotado pelo campeão. Ele sofreu mais duas derrotas naquele mesmo ano, além de outras lutas sem decisão. A partir daí, sua carreira entra em declínio. Coincidentemente, naquele mesmo ano, numa quinta-feira, 24 de outubro, a Bolsa de Valores de Nova Iorque entra em colapso. Este evento marca o início da Grande Depressão.
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Implícito nos conselhos da mãe de Jimmy Braddock, estava o fato de que, ao contrário da maioria das pessoas, boxeadores não recebem salários. O seu ganha pão depende das lutas que seu empresário consegue agendar e do número de ingressos vendidos para assisti-las. Poucas lutas ou poucos ingressos vendidos, significam pouco dinheiro. A posição do pugilista é muito particular: Como todo atleta, os anos mais produtivos de sua carreira são na juventude, mas, ao contrário da maioria dos atletas, devido a natureza do boxe, esses anos podem acabar abruptamente. Na época de James Braddock, um pugilista de vinte e cinco anos já era considerado velho.
Isso significa que, enquanto o boxeador profissional está em atividade, a maior parte da sua renda é transitória e, portanto, seu consumo ao longo do tempo deve ser muito bem planejado. O que é implícito na vida do assalariado, para quem o fluxo de gastos com consumo mensal tende a coincidir com o fluxo de renda, é explícito para o pugilista: ao planejar o consumo, ele precisa levar em conta não só a renda de hoje, mas também a renda do futuro, o que significa discernir entre rendas transitórias e rendas permanentes.
Um plano de consumo é uma estimativa do quanto o consumidor irá consumir em cada dia da sua vida. Isso parece estranho a primeira vista, pois, nem eu e, provavelmente, nem o leitor desta newsletter temos esse plano salvo no google drive (ou no WhatsApp em que você manda mensagens para você mesmo). E ainda assim nem eu nem o leitor ignoramos o amanhã. O planejamento funciona mais ou menos como o plano que nós fazemos ao atravessar uma rua — ninguém mede a distância dos carros, nem a distância a ser percorrida entre um meio fio e o outro. Intuitivamente, o que guia nossos planos é uma regra muito simples: o último real gasto em cada dia deve ter mais ou menos o mesmo valor subjetivo entre eles, pois, caso contrário, valeria a pena mudar esse real de um dia em que ele vale menos para um dia em que ele vale mais7.
Em um mundo sem juros e sem impaciência (quando cem reais gastos hoje trazem o mesmo valor subjetivo que cem reais gasto amanhã8) essa regra fica muito simples: James J. Braddock deveria consumir a mesma quantidade todos os dias da sua vida. Essa quantia é a soma de todas as rendas que ele espera receber até o fim da vida dividido pelo número de dias, ou seja, a renda média. Obviamente, essa conta é feita tendo em mente a renda mais provável de cada período: Enquanto para um assalariado essa renda tende a oscilar muito próximo ao salário, para James Braddock ela tende a variar muito mais. A diferença gera padrões de consumo diferentes mesmo que em um determinado mês Braddock e o assalariado ganhem a mesma renda. O que determina o consumo naquele mês é o componente da renda que é permanente. Isso significa que sempre que Braddock ganhava uma renda maior do que a renda média esperada, ele deveria poupar a diferença e não aumentar o consumo naquele mês. Por outro lado, quando a renda do mês vinha abaixo da renda média, ele deveria “despoupar” para manter o seu plano de consumo.
As finanças de Jimmy
[Dois promotores estão rindo. Eles nem percebem Jim no começo. Só notam quando ele já está parado bem diante deles.]
BRADDOCK: Sr. Allen. Phil.
[Dizer isso quase o destrói.]
BRADDOCK: O negócio é o seguinte... não consigo pagar o aquecimento. Tive que mandar meus filhos embora.
[Cada palavra sai como se pesasse toneladas.]
BRADDOCK: No cais, eles vivem cortando os turnos. Você não é chamado todo dia. Só preciso de um pouco pra me recuperar.
[A vergonha é quase insuportável.]
BRADDOCK: Vendi minhas luvas e meus sapatos. Consegui dois dólares. Preciso de mais dez e cinquenta. Pra pagar a conta. E poder tê-los de volta.
Em 1933, os Estados Unidos e James J Braddock chegaram ao ponto mais baixo de suas crises. Desesperado, sem vencer as lutas nos poucos lugares disponíveis para boxeadores desprestigiados, sem conseguir emprego nas docas ou em qualquer outro lugar que estivesse ao alcance de suas habilidades (afinal, nesse ano, um quarto dos americanos economicamente ativos estavam desempregados), Jimmy recorre ao recém-criado auxílio do governo federal destinado aos americanos que se encontravam em extrema pobreza. Um observador que tivesse acesso apenas a dois pontos da vida de Jimmy, o momento de triunfo em 1928 no Maddison Square Garden e a desonrosa visita ao serviço de previdência social, poderia imaginar que o boxeador descendente de irlandeses não seguiu o conselho materno a respeito de guardar dinheiro. Afinal de contas, em um determinado momento da carreira, James Braddock chegou a acumular 850 mil dólares a preços de 2025, uma elevada quantia que, se bem administrada, seria no mínimo capaz de impedir que sua família passasse fome e frio. No entanto, não foi intemperança que o levou a ruína.
Assim que Braddock começou a ganhar dinheiro, ele quitou a hipoteca da casa de seus pais. O restante do dinheiro foi poupado. Uma parcela dele foi guardada no banco, já a outra parte foi investida na bolsa de valores de Nova Iorque e em uma empresa de táxi na mesma cidade. Em 1930, o banco faliu e Jimmy perdeu toda poupança que havia lá. Esse banco se chamava Banco dos Estados Unidos e sua falência foi um marco da Grande Depressão. A quebra de uma instituição com o nome do próprio país e o fato dele ser um dos grandes bancos de Nova Iorque abalaram definitivamente a confiança no sistema bancário americano. Em 1931, foi a vez da empresa de táxi de Jimmy quebrar, pois, como bem destaca o biografo do boxeador “as pessoas simplesmente não conseguiam mais pagar por uma corrida de táxi”. Eu não preciso dizer o que aconteceu com o dinheiro de Jimmy aplicado na bolsa. Resumindo, o boxeador perdeu tudo o que havia acumulado.
A história de fracassos financeiros de Braddock ilustra um elemento importante da Teoria da Renda Permanente. O leitor já compreendeu que sob os pressupostos dessa teoria, o consumidor tem um plano de consumo não só para o dia de hoje ou para a semana, mas para a vida inteira. Esse plano determina que boa parte da renda transitória seja poupada para garantir o seu cumprimento. O problema é que na vida real todas as formas de poupar envolvem incertezas em relação ao rendimento delas. O dinheiro no banco, o valor da empresa de táxi e das ações adquiridas na bolsa são ativos cujas valorizações são incertas (e algumas delas são mais incertas que outras).
Ajudaria o leitor imaginar que cada tipo de ativo corresponde a um alvo de um jogo de dardos. Imagine alguns alvos circulares com divisões que demarcam áreas de pontuação. No centro de cada alvo, há um círculo pequeno, difícil de acertar. Mais afastado do centro, existem áreas demarcadas por círculos concêntricos ao círculo pequeno. Essas áreas são divididas em outras regiões formando algo como “pedaços de pizzas” e, por serem maiores do que o círculo pequeno, são mais fáceis de acertar. (Por fácil e difícil, entenda o leitor o seguinte: se dardos fossem jogados aleatoriamente na direção do alvo, haveria mais dardos nas áreas afastadas do centro do que no centro.)
Nesse jogo de dardos, cada área demarcada vale uma determinada pontuação que vai multiplicar o valor poupado. Imagine que um dos alvos se chama “dinheiro no banco”. Nesse alvo, todas as áreas, sejam nas mais fáceis ou mais difíceis de acertar, a pontuação é a mesma: um. Ou seja, não interessa onde o dardo cair, o jogador recebe a mesma quantidade de dinheiro que foi poupada ali. No resto dos alvos, cada área tem valores diferentes. Existem números grandes e pequenos maiores que um. Existem também algumas áreas com números menores do que um e até mesmo zero. Ou seja, nesses alvos, o jogador pode receber muito mais do que aplicou, mas também pode receber menos, até mesmo zero.
Abusando da analogia, para implementar o seu plano de consumo, o indivíduo precisa escolher bem quais alvos ele vai querer jogar dardos e quanto do seu dinheiro ele vai destinar a cada um deles. Uma regra que faz muito sentido em geral é que o indivíduo deveria descartar todos os alvos que na média tendem a dar um retorno menor do que aquele alvo chamado “dinheiro no banco”. Isso significa supor que geralmente ninguém gosta de correr riscos desnecessários. Os alvos que sobraram oferecem uma troca tentadora: um retorno médio maior do que o alvo “dinheiro no banco”, mas ao preço de aumentar a incerteza em relação ao futuro.
Para resolver esse problema, lembre-se o leitor que, segundo a teoria da renda permanente, o bem-estar que o último real gasto hoje proporciona ao indivíduo precisa ser equivalente ao bem-estar que esse mesmo real o proporcionaria amanhã. Nada mais importa. Quando o retorno da poupança não é incerto, a única incerteza que aflige o indivíduo é saber o quanto um real a mais vai trazer de bem-estar para ele no futuro. Pode ser que valha muito ou pouco a depender da situação em que ele se encontre no dia de amanhã. Por exemplo, um real adicional é mais valioso se você perdeu o emprego do que numa situação em que você está empregado.
Se o retorno da poupança é incerto, o problema do consumidor complica mais. Ele já tinha incerteza sobre qual seria o bem-estar proporcionado por um real de consumo a mais amanhã. Agora, dependendo do ativo escolhido para levar esse um real para o futuro, ele também não sabe com certeza qual será o valor monetário desse real quando o futuro chegar. (O valor do ativo vai depender de qual região do alvo o dardo vai acertar.) Antes, o consumidor tinha que estimar apenas a média do valor do bem-estar de um real a mais. Agora ele também precisa estimar a média do retorno futuro do ativo. E não é só isso. Como o benefício de poupar um real hoje depende do quanto ele vai valer amanhã em termos monetários e em termos de bem-estar, o consumidor também precisa entender qual é a relação entre as duas coisas. O que o consumidor não gostaria de fazer é poupar muito através de um ativo que tenha um retorno muito baixo justamente quando ele mais precisa de dinheiro. Por outro lado, um ativo que pague muito bem quando o consumidor está em apuros é bastante atraente. Isso significa que ativos cujos retornos são negativamente relacionados com o bem-estar gerado por um real a mais de consumo no futuro são mais arriscados para o consumidor e vice-versa.
[Ajudaria o leitor a pensar em exemplos das duas situações. Ouro é um investimento que tende a subir de preço quando há uma crise econômica. É justamente durante crises econômicas que um real a mais tem um valor subjetivo maior para as pessoas em geral, uma vez que é nesses momentos que o risco de desemprego e de redução na renda é maior. Ou seja, ouro é um tipo de investimento que está positivamente relacionado com o valor subjetivo de um real a mais “amanhã”: ele vale muito quando você precisa muito de dinheiro. Por outro lado, ações da bolsa do país em que você trabalha têm a relação oposta. Quando a economia está mal, o retorno das ações é baixo, mas o valor subjetivo de um real a mais para você é alto.]
Esse desdobramento da teoria da renda permanente ajuda a entender parte dos problemas financeiros de Jimmy. O lucro de uma empresa de táxi em Nova Iorque depende de quantos passageiros ela tem. O número de passageiros, por sua vez, depende da atividade econômica da cidade. A bolsa de valores de Nova Iorque também depende da atividade econômica, pois a valorização das ações de uma empresa reflete a expectativa do quão lucrativa ela será. Ou seja, o rendimento de dois dos três investimentos principais de Braddock dependiam da prosperidade econômica dos Estados Unidos. Pelos desdobramentos da teoria da renda permanente, isso por si só não seria necessariamente ruim. O fundamental era saber como o rendimento desses ativos variavam em relação as necessidades financeiras de Jimmy. E aí estava o problema. A prosperidade econômica dos Estados Unidos também estava inversamente relacionada a necessidade de dinheiro do boxeador. Crises econômicas reduzem não só o número de lutas, mas também o valor da bolsa recebida em cada uma delas. Além disso, elas reduzem as oportunidades fora do boxe para os atletas que não conseguem ganhar seu sustento com lutas. Esse era o caso de Jimmy, o qual só conseguia trabalho como estivador no cais do porto. Portanto, mesmo tendo ouvido o conselho de sua mãe, Braddock acabou tomando decisões de investimento muito arriscadas para uma pessoa como ele.
Um Coração Determinado
“O inacreditável aconteceu”, ele escreveu. “James J. Braddock é o campeão mundial dos pesos pesados. Nada parecido jamais aconteceu antes na longa história do boxe profissional. Isso só mostra até onde um coração determinado pode levar um homem — desde que ele tenha um bom soco de esquerda para acompanhá-lo.”
— Schaap, Jeremy. Cinderella Man: James J. Braddock, Max Baer, and the Greatest Upset in Boxing History (p. 265). Mariner Books. Edição do Kindle.
Depois de atingir o ponto mais baixo no começo de 1933, a economia americana começava a se recuperar. Nesse meio tempo, Jimmy trabalhava no cais do porto como estivador. O trabalho duro mantinha o ex-boxeador em boa forma física. Além disso, as sucessivas lesões na mão direita, obrigaram-no a usar sua mão esquerda no trabalho, aumentando significativamente sua destreza. O trabalho duro e o uso da mão que, até então, era imprestável ao boxeador em suas lutas, providencialmente ajudaram Jimmy em 1934, quando seu empresário conseguiu agendar uma luta com um boxeador de prestígio chamado “Corn” Griffin em Long Island, NY. Após nove meses sem lutar, Jimmy vence a luta por nocaute técnico. Ele estava de volta.
Eventualmente, após derrotar mais dois boxeadores de prestígio, James J. Braddock finalmente ganha uma nova chance de disputar o cinturão de pesos pesados. Dessa vez, o detentor do título era Max Baer. Em 1935, desafiando todos os prognósticos, o descendente de irlandês que havia experimentado grandes sucessos, humilhantes derrotas e até mesmo a pobreza extrema, vence o detentor do título e se consagra o novo campeão mundial. Após a luta, os jornalistas esportivos não demoraram para traçar o paralelo entre a biografia de Braddock e do “Homem Comum” americano vítima da Grande Depressão. O cinturão de campeão mundial permaneceu com Jimmy até 1937, quando ele foi facilmente derrotado por Joe Louis, um dos maiores pugilistas da história. Coincidentemente, nesse mesmo ano a economia americana interrompeu sua recuperação no que ficou conhecida como “A Recessão de Roosevelt”. De fato, os destinos de Jimmy e do seu país pareciam estar entrelaçados.
A Grande Depressão foi um dos tópicos que mais me interessavam quando eu era jovem. Ainda no colégio, eu gostava de política e, de maneira confusa e ingênua, me associava a uma ideologia “liberal”, “capitalista”, misturada com anti-“anti-americanismo” (a época era entre 1997 e 1999, por aí. Eu lia o Manual do Perfeito Idiota Latino-americano e assistia Manhattan Connection com o meu pai. Foi por aí também que eu ouvi na televisão a expressão overshooting cambial e resolvi virar economista). A Grande Depressão era aquele acontecimento lamentável não só do ponto de vista real, em termos do sofrimento que ela causou, mas também porque pegava muito mal para o time liberal. Mantendo a analogia futebolística, era como se o time liberal tivesse sofrido um rebaixamento. Esse sentimento meio bobo e juvenil providencialmente acabou me levando a estudar economia e aprender um pouco mais sobre a Crise de 1929. Eu conheci os trabalhos do Milton Friedman com a Anna Schwartz que ofereciam uma explicação convincente sobre a gravidade e duração da crise. Além deles, é claro, eu também tive contato com a escola austríaca, principalmente Menger, Bohm-Bawerek, Mises e Hayek, que oferecia uma teoria interessante sobre ciclos econômicos, a qual vale a pena mencionar nesta nota de roda pé, afinal, se você leu ela até aqui, claramente você quer saber mais:
Caro leitor, existem muitas maneiras de cortar árvores. Uma delas é usar pedras que você encontra no chão para cortar um anel ao redor do tronco e depois usar fogo controlado para derrubá-la. Outra maneira é usar um machado. Uma terceira maneira é usar uma serra elétrica e, finalmente, você pode usar uma colheitadeira florestal. A diferença entre elas está na produtividade e no tempo que você tem que esperar para extrair a madeira: enquanto a pedra lascada te permite cortar árvores imediatamente, mas com pouca produtividade, a colheitadeira florestal demora para ficar pronta, mas, uma vez pronta, você pode derrubar uma floresta inteira alguns dias. A diferença entre elas se resume a estrutura de capital utilizada. A pedra lascada é um capital que demora algumas horas para ficar pronto, enquanto a colheitadeira demora bem mais tempo. Um dos problemas que uma sociedade precisa resolver é identificar a melhor maneira para cortar árvores: Ela deve usar baixa ou alta intensidade de capital?
Em uma economia de mercado, é a taxa de juros da economia que regula qual o melhor jeito de cortar árvores. Taxas de juros altas significam que investimentos na produção de coisas que vão demorar muito para ficarem prontas não são lucrativos. Nesse caso, não vale a pena esperar a colheitadeira ser produzida. A madeireira vai ser menos produtiva com pedra lascada, mas, pelo menos, vai dar lucro. Taxas de juros muito baixas significam que talvez até aquela empresa que está tentando inventar uma colheitadeira automática de árvores guiado por inteligência artificial e que só vai ficar pronto daqui a dez anos será lucrativo. A colheitadeira vai demorar dez anos, mas quando o momento chegar, não vai faltar mais madeira para a sociedade.
Alterar a taxa de juros, portanto, significa alterar a estrutura produtiva da economia, aumentando ou diminuindo os estágios de produção até o consumidor final. Ela é quem determina a viabilidade de processos mais ou menos “indiretos” e “demorados” de produção. Uma redução de juros deve estimular mais aquelas atividades distantes do consumo (fábricas de colheitadeiras, construção civil, pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica etc.), pois são essas atividades cuja lucratividade é mais sensível ao custo do tempo. Um aumento dos juros, por outro lado, deprime essas atividades em detrimento de atividades cujo tempo de maturação é curto como, por exemplo, um restaurante que vende hamburguer.
*[Para entender melhor isso, considere o exemplo dado pelo economista Böhm-Bawerk sobre quantos anos o vinicultor deve deixar o vinho envelhecendo: Quanto mais tempo ele deixa no barril, maior será o preço da garrafa. Por outro lado, quanto mais tempo o vinho fica ali, por mais tempo ele abrirá mão dos juros que ele receberia se vendesse o vinho imediatamente e emprestasse o dinheiro da venda para alguém. Enquanto o aumento no preço resultante de envelhecer o vinho por mais um ano for maior do que o ganho com os juros de vender o vinho agora, vale a pena deixar o vinho no barril. O momento certo de vender a garrafa, portanto, é quando o aumento de preço resultante de envelhecer o vinho um minuto a mais se tornar igual o menor do que o juro. Note como a taxa de juros da economia, portanto, determinaria o envelhecimento dos vinhos. Note também, como argumentará Irving Fisher, que não é necessariamente o tempo mais longo de produção que aumenta a produtividade da atividade. O que acontece é que um custo de oportunidade de tempo menor viabiliza processos mais demorados, sejam eles mais produtivos ou não. Obviamente os empresários vão tender a escolher aqueles mais produtivos. Recentemente, um artigo na NBER mediu o “Período Médio de Produção” das empresas como sendo a razão entre o custo do inventário da empresa e o custo dos produtos vendidos. Segundo o artigo, quanto maior era o custo de capital dessas empresas, menor era a razão, ou seja, menor era o tempo médio de produção.]*
Mises e Hayek argumentam que a taxa de juros que coordena o uso do tempo e, portanto, o tempo médio de produção da economia, é determinada naturalmente pela oferta e demanda de poupadores e tomadores de empréstimos. Essa taxa de juros, no entanto, é “latente” e não necessariamente coincidirá com a taxa de juros bancária, a qual é muito mais influenciada pela política monetária do governo, que pode alterá-la comprando ou vendendo títulos públicos, por exemplo. O descolamento entre as duas taxas de juros (natural e bancária) gera problemas de coordenação na economia. Quando a taxa de juros bancária está mais baixa do que a natural, empreendimentos de longa maturação se tornam artificialmente viáveis, isto é, viáveis sob o ponto de vista da taxa de juros bancária, mas inviáveis sob a taxa de juros natural. Esse processo deflagra uma competição por recursos da economia por parte das empresas naturalmente viáveis e artificialmente viáveis. Essa competição faz com que o preço dos recursos e dos ativos aumente. Durante esse tempo, a economia observa um boom econômico. O processo de expansão, no entanto, acaba gerando ou inflação cada vez mais elevada ou bolhas em mercados de ativos (como ações, mercado imobiliário etc.). Eventualmente, será preciso haver uma correção, a qual aproxima a taxa de juros bancária da taxa de juros natural e é nesse momento que os investimentos artificiais se revelam inviáveis do ponto de vista econômico e a crise econômica é deflagrada.
Não vá o fiel leitor que me seguiu até aqui achar que eu sou um economista austríaco. Eu estudei bastante o assunto, principalmente no começo da faculdade, depois que eu fui em um fórum da liberdade e vi o professor Olavo resumir em três frases o argumento da impossibilidade do cálculo em uma economia socialista do Ludwig von Mises (eu me levantei e imediatamente fui comprar Ação Humana, o qual eu li nos degraus da faculdade de economia). Como eu disse, quando eu era jovem eu tinha muitas convicções, uma delas é de que eu era um economista austríaco, mas hoje eu sou apenas um economista. Talvez, no máximo, um frequentador do AA: Austríacos Anônimos (um dia de cada vez). Não, não. Eu tenho alguns problemas com essa teoria. O principal deles é que, desde que Robert Lucas Jr. escreveu a Crítica de Lucas, o sujeito que faz um modelo para explicar algum fenômeno econômico não pode ser mais inteligente que as pessoas que vivem no modelo dele. Se o autor do modelo consegue identificar o descolamento entre a taxa natural e a bancária, o que faz com que os empresários não consigam? Existem alguns potenciais candidatos para resolver esse problema, algo equivalente ao modelo de ilhas do próprio Robert Lucas Jr., mas essa nota de roda pé já ficou grande demais, então é melhor parar por aqui.
Uma crise de liquidez acontece quando o banco fica sem dinheiro para honrar seus compromissos. Ela é deflagrada por rumores (verdadeiros ou falsos) a respeito da saúde financeira do banco. Em 1929, muitos devedores de empréstimos bancários começaram a atrasar o pagamento, prejudicando o fluxo de caixa e o patrimônio líquido dos bancos. Quando isso começa a acontecer, não demora muito para que surjam rumores sobre a solvência do banco, isto é, a capacidade do banco de garantir os depósitos aos seus clientes. Nesse ambiente, nenhum depositante quer correr o risco de ficar sem seu depósito e, portanto, corre para o banco. Note que todos os clientes também têm a mesma ideia, mesmo aqueles que não acreditam no rumor, pois a própria corrida bancária em si mesma é capaz de tornar o banco insolvente, e, se este não for auxiliado pelo banco central ou por outros bancos, ele de fato quebra.
A insuficiência de gasto resultava em uma redução de produção por parte dos empresários, pois estes ajustavam suas expectativas. A redução na produção, por sua vez, reduzia a demanda efetiva, o que fazia os empresários ajustarem novamente as expectativas, até que demanda efetiva e produção fossem iguais e, finalmente, um novo equilíbrio fosse atingido. O problema é que a produção existente nesse equilíbrio não necessariamente coincide com aquela que utiliza toda a capacidade produtiva da economia.
Irving Fisher também foi o precursor de muitas outras teorias importantes para a economia. Para ver mais detalhes sobre suas contribuições, veja Irving Fisher and the Modern Macroeconomics.
A mais importante delas é a World Boxing Association, com sede no Panamá. Sua antecessora foi a National Boxing Association, criada em 1921, nos Estados Unidos e, embora existissem atletas que recebiam a alcunha de campeão mundial antes dela, pode-se dizer que ela foi a primeira que oficializou o título.
Quando Jimmy disse à mãe que queria ser boxeador, ela não tentou convencê-lo a seguir a carreira de advogado ou entrar para o sacerdócio. Em vez disso, ela teria dito a ele: “Fico feliz em saber que você decidiu viver do boxe. Talvez eu entenda muito pouco sobre a sua profissão, mas sei que, para ter sucesso, é preciso levar uma vida muito correta, treinar duro, ouvir o seu treinador e, o que é mais importante, economizar o que você ganhar.”
— Schaap, Jeremy. Cinderella Man: James J. Braddock, Max Baer, and the Greatest Upset in Boxing History (pp. 80-81). Houghton Mifflin Harcourt. Edição do Kindle.
Se queremos ser mais precisos, esse valor deveria levar em conta o fato de que o consumo no dia seguinte só vai acontecer no dia seguinte e não hoje, ou seja, eu vou ter que esperar para esse consumo. Portanto, entra no cálculo a minha impaciência em esperar o consumo amanhã (o que faz com que gastar cem reais amanhã sempre me traga menos bem-estar do que gastar esses cem reais hoje). Além disso, além da dor existente em esperar o dia seguinte para consumir, também existe a taxa de juros. Olhando do presente, cem reais hoje valem mais do que cem reais amanhã. De forma mais geral, a regra do mesmo valor do último real gasto deve levar em conta a impaciência (custo de esperar o consumo) e o juro (benefício de esperar o consumo).
Ver nota de rodapé número 7.