Mercado Imobiliário e a Informação Incompleta
Todo reality show de compra e venda de casas é sempre dublado
Você já notou que todos os reality shows de compra e venda de casas são dublados? Claro, todos eles se passam nos EUA ou no Canadá. Não existem realities brasileiros desse tipo de coisa. Antes de você botar a culpa na produtividade da indústria nacional de realities, quero lembrar o leitor de que abundam no Brasil shows de competições culinárias. Ou seja, sabemos fazer esse tipo de coisa. Não, a ausência de programas de compra e venda de casas não é explicado pela nossa incompetência. Por incrível que pareça, o problema é outro. O mercado imobiliário brasileiro ainda é muito ineficiente. Comparado aos EUA, por exemplo, os negócios imobiliários são poucos e distantes entre si e, claro, não dá para fazer um shows assim.
Ineficiência em mercados é uma especialidade brasileira e existem diversas causas para que ela aconteça no mercado de imóveis. No entanto, eu gostaria de chamar a atenção para uma em particular. No Brasil, os participantes desse mercado estão muito longe de possuirem informação completa sobre ele. E nesse post você verá que isso faz toda a diferença.
Um conto de dois mercados
O fim do ano está próximo. Suponha que você queira fazer uma viagem para os EUA. Naturalmente você precisa comprar dólares e isso significa que você tem que vender reais. Por quantos dólares você venderá seus reais? Aliás, quanto vale um dólar? É fácil descobrir. Com um smartphone e não mais do que trinta segundos, você tem mais ou menos uma ideia da resposta. O próximo passo é ir até alguma casa de câmbio ou banco para comprar a moeda americana. Um dos motivos pelo qual todo esse processo não dura mais do que algumas horas é que o preço de um dólar é amplamente conhecido. Você até pode tentar brincar de especulador e esperar alguns dias para comprar, na aposta que o dólar vai baixar de preço, mas, convenhamos, se você está determinado a viajar, isso é muito mais um preciosismo do que uma necessidade.
Explicando mais detalhadamente, a verdade é que esse mercado é tão fácil de usar graças a duas características. A primeira é que um dólar é um dólar, não importa se você comprou numa casa de câmbio ou do seu amigo que recém voltou de Nova Iorque. Ou seja, todos os dólares têm exatamente a mesma qualidade e serventia. A segunda característica desse mercado é que possível ver em tempo real quais foram os preços negociados nas últimas transações. Assim como as ações de grandes empresas (Petrobrás, Vale e etc.), boa parte dos últimos preços negociados e outras informações relevantes estão todas disponíveis para o público. Ou seja, todos nós temos acesso ao mesmo conjunto de informação.
Dessa forma, as negociações são rápidas e o preço acordado em cada uma delas em um determinado momento do tempo tendem a ser muito parecidas. Isso quer dizer que dificilmente você verá uma transação de reais por dólar ser muito maior ou muito menor do que a cotação do dólar no site do google (somando, claro, a comissão da casa de câmbio, taxas e custos). Enquanto eu escrevo esse texto, o dólar comercial está em 5,32. Neste momento, provavelmente estão ocorrendo milhares de transações de reais por dólar e é altamente improvável que em alguma delas o preço será três reais ou sete reais. Nem perto disso. Elas tenderão a ficar próximas do valor publicamente anunciado.
***
Agora vamos mudar de mercado.
Suponha que você descobre que vai ser pai ou mãe e, portanto, chega a hora de trocar de apartamento. A experiência com o mercado imobiliário será bem diferente do mercado de câmbio. A diferença mais óbvia é que a aquisição de um imóvel representa um gasto muito maior e, portanto, é uma decisão que será tomada com mais cuidado. A segunda diferença é que imóveis não são como dólares, isto é, cada um é diferente do outro. Existe uma quantidade enorme de características que afetam o seu valor como, por exemplo, localização, tamanho, número de quartos, ano de construção, altura e etc. A terceira diferença é que, nesse mercado, é bem mais difícil de coletar todas as informações relevantes para uma decisão informada.
O que você leva em conta na hora de decidir quanto pagar por um imóvel específico? Sua decisão se baseia em um conjunto limitado de informações. Você sabe o preço anunciado de alguns imóveis próximos da sua região, sabe o preço que algum amigo seu disse que pagou por um apartamento. Você investiga alguns sites de imobiliárias, fala com seu corretor e pergunta para os porteiros dos prédios sobre possíveis ofertas. Note que há um custo crescente para obter mais e melhores informações. No limite, você poderia investir tempo e dinheiro indo em cartórios para verificar o valor que consta nas matrículas de alguns imóveis. De qualquer sorte, por maior que seja seu investimento em obter mais informações, ainda assim você estará longe de possuir todas as informações relevantes. É provável que existam informações ausentes que afetem dramaticamente a sua disposição a pagar por um determinado imóvel. A mesma lógica vale para a pessoa que está vendendo o imóvel.
Além do conjunto de informação ser incompleto, provavelmente cada pessoa terá um conjunto diferente. Isso é o oposto do que acontece no mercado de dólares. Por isso, é perfeitamente natural que existam grandes divergências nos preços pagos por apartamentos muito parecidos. A pessoa que gastou mais tempo pesquisando, por exemplo, pode ter pago um preço muito mais baixo do que uma pessoa que não pesquisou. Evidentemente, o mesmo fenômeno pode ser compreendido pelo ponto de vista do vendedor. Dois vendedores podem ter vendido apartamentos similares por preços bem diferentes. Basta que um estivesse melhor informado do que o outro ou tivesse tido a sorte de encontrar um comprador pouco informado.
Essa grande variação nos preços é típica em mercados onde as informações a respeito dele são incompletas. Nos mercados competitivos onde a informação é amplamente difundida entre compradores e vendedores, vigora a lei do preço único1. Essa lei diz que — desconsiderando custos de transporte — o preço de um bem deveria ser o mesmo em todos os lugares. Ou seja, o preço do dólar em São Paulo deveria ser muito parecido com o preço do dólar no Rio de Janeiro. Para o caso dos imóveis é um pouco diferente, pois localização e outras características importam muito. No entanto, o princípio pode ser reformulado. A lei do preço único para o imóveis diz que, ajustado pelas características do apartamento, o preço deveria ser igual ou muito parecido.
Note que quanto mais informação existir no mercado de imóveis, mais parecido ele será com o mercado de dólares ou de ações. Em particular, o conjunto de informação de compradores e vendedores de imóveis melhoraria muito se os preços das últimas transações imobiliárias fossem publicizados. Se fosse possível saber facilmente por quanto cada tipo de imóvel foi negociado anteriormente, todos os que querem comprar ou vender apartamentos teriam conjuntos de informação muito próximos e, portanto, haveria uma convergência nos preços.
O Experimento Israelense
Se é verdade que quanto mais completa forem as informação sobre um mercado, menor será a variação de preços observada, então políticas que aumentam a transparência de um mercado contribuirão para uma redução dessa variação. Foi justamente essa hipótese que os economistas Ben-Shahar e Golan testaram no artigo “Improved information shock and price dispersion: A natural experiment in the housing market”.
Assim como é atualmente no Brasil, antes de 2010 o mercado imobiliário israelense era pouco transparente. O preço pelo qual um imóvel foi vendido era informação privada, reservada apenas aos compradores, vendedores e potenciais intermediários da transação (corretores ou imobiliárias). Cada novo comprador e vendedor entrava no mercado sem referências sobre o valor dos imóveis, exceto por sites de anúncios — que contém apenas o valor que o vendedor está pedindo (asking price) — ou informações esparsadas de conhecidos ou amigos. O resultado era aquele esperado em um mercado com informação incompleta: apartamentos similares sendo vendidos a preços bem diferentes.
Em abril de 2010, no entanto, a realidade do mercado imobiliário de Israel mudaria drasticamente. Como no Brasil, o governo israelense exige que toda transação imobiliária seja reportada para uma autoridade fazendária específica. Essa informação não era divulgada publicamente pelo governo daquele país, mas, naquele ano, uma decisão judicial obrigou o fisco a tornar público os preços e características dos imóveis negociados. A partir daquele momento, qualquer cidadão de Israel poderia acessar um site da autoridade fiscal e baixar informações sobre os imóveis negociados desde 1998 em diante. Ou seja, doze anos de dados imobiliários passaram a ser divulgados publicamente.
É evidente que o conjunto de informação dos compradores e vendedores se expandiu dramaticamente. A informação do valor negociado é muito mais útil do que o valor anunciado, pois dificilmente o último coincidirá com o primeiro. É muito comum, por exemplo, que o valor negociado esteja abaixo do valor anunciado. Além dessas informações serem úteis para qualquer interessado em particular, elas se tornam especialmente úteis para o mercado como um todo na medida em que sua existência se torna conhecimento comum2. Ou seja, todos os agentes envolvidos nesse mercado sabem que todos os outros agentes têm acesso e todos sabem que todos os agentes sabem que os agentes têm acesso… e assim por diante. Essas duas forças combinadas agem sobre a dinâmica das futuras transações. Como resultado, a variabilidade de preços dos imóveis similares negociados deveria reduzir substancialmente.
De fato, os autores do estudo encontram uma redução significativa na dispersão do preço dos imóveis ajustado pelas características dos mesmos. Em outras palavras, os preços de imóveis similares convergiram para valores próximos entre si ao longo do tempo. Um outro resultado interessante é que esse efeito foi maior nas regiões em que os agentes que participavam do mercado tinham um nível socioeconômico mais baixo. Ou seja, as informações públicas têm efeito maior nos mercados em que as pessoas de baixa renda participam. Segundo os próprios pesquisadores, esse resultado é intuitivo, afinal são essas pessoas que, muito provavelmente, têm maior dificuldade em obter informações. Pessoas de classe media ou alta têm mais tempo e dinheiro para gastar ampliando seu conjunto de informações.
Lições para o Brasil
O mercado imobiliário brasileiro sofre dos mesmos problemas que Israel sofria antes de 2010. As lacunas informacionais desse mercado tornam o processo de compra e venda de uma casa ou apartamento excessivamente demorados. É muito comum os vendedores anunciarem um preço alto demais e demorar muito para alterá-lo. Em muitos casos, o que acaba corrigindo o preço é o tempo, através da inflação, com o imóvel sendo vendido um ou dois anos mais tarde. Como consequência, o mercado acaba funcionando ineficientemente, ou seja, transações que ocorreriam em um mercado com mais informação acabam não ocorrendo.
Uma das formas de corrigir isso passa pela divulgação dos preços dos imóveis negociados, assim como se fez em Israel. No Brasil, o valor de todas as transações imobiliárias devem ser reportados para que seja cobrado o ITBI. As secretarias das fazendas municipais, portanto, possuem um conjunto muito rico de informações que se fossem divulgadas para o público, aumentariam em muito a eficiência do mercado. Felizmente, já existem algumas iniciativas nesse sentido. Em Porto Alegre, por exemplo, há o Imobindex. Ele é uma ferramenta de visualização do valor dos imóveis a partir dos dados de ITBI dessa cidade. É possível acompanhar a série histórica do preço do metro quadrado por bairro e por CEP, bem como explorar um mapa contendo o valor do metro quadrado de cada prédio onde houve alguma negociação. Além dessa cidade, São Paulo também divulga os dados do ITBI. Os dados de São Paulo são ainda melhores, pois através dele é possível identificar a unidade (número do apartamento) dentro de cada prédio.
O ideal seria que todas as cidades do Brasil passassem a fornecer esses microdados do ITBI. Assim compradores e vendedores terão informações que atualmente só estão disponíveis parcialmente para imobiliárias e construtoras. A difusão dessas informações para os indivíduos diretamente interessados poderia aumentar a eficiência e liquidez desse mercado, desenvolvendo ainda mais a capacidade de transformar a propriedade em um ativo, facilitando o destravamento de crédito no Brasil. Esses efeitos combinados teriam como consequência um aumento do bem-estar da população em geral. E, é claro, o que é mais importante: finalmente haveria uma a indústria nacional de reality shows de casas no Brasil.
Sobre o efeito que o aumento de informações gera nos mercados, eu recomendo fortemente que o leitor se informe sobre este artigo. Ele mostra como introdução de celulares numa região da Índia revolucionou o mercado local de pesca. O peixe fresco é, por definição, um produto cuja janela de negociação é curta — o mercado abre cedo e fecha rápido e se dá próximo ao porto. Como os pescadores só tem tempo de parar em um dos vários possíveis portos locais, o problema dele é saber em qual dos mercados locais ele deve parar. A pergunta que ele faz é: “Onde está faltando peixe (preço alto) e onde está sobrando (preço baixo)?” Sem celular isso é uma aposta. Com celular, ele pode ligar para os portos. Com a informação disponível aumentando consideravelmente, a lei do preço único passa a valer.
Os autores se dão ao trabalho de mostrar através da ferramenta Google Trends que as buscas “informações imobiliárias” deu um salto após a divulgação do site contendo as informações de preços. Ou seja, não era segredo para ninguém interessado.