O Espírito de Porto Alegre - Uso do Conhecimento na Sociedade (e nos Desastres) - Reconstrução
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O Espírito de Porto Alegre
Em maio, centenas de pequenas embarcações de lazer foram utilizadas para resgatar pessoas que estavam isoladas e em perigo. Estou falando, é claro, de maio de 1940, quando a Operação Dínamo foi deflagrada para o resgate de centenas de milhares de soldados presos entre o Canal da Mancha e a, até então, invicta Wehrmacht. O uso de embarcações e voluntários civis foi retratado no filme Dunkirk, do cineasta Christopher Nolan.
Oitenta e quatro anos depois, em Porto Alegre, minha cidade natal, e em outras cidades do Rio Grande do Sul, vimos algo parecido. Voluntários com lanchas, botes, barcos, jet-skis navegavam nas águas turvas das enchentes para resgatar as pessoas ilhadas. Foi uma espécie de “Dunquerque porto-alegrense”, uma Dunquerque riograndense” ou, porque não, “uma Dunquerque brasileira”, afinal vimos voluntários de todas as partes do Brasil.
Logo após a retirada bem sucedida, Winston Churchill, em 04 de junho de 1940, afirma em seu mais famoso discurso que “o que aconteceu na França e Bélgica foi um desastre militar colossal e que guerras não são vencidas com retiradas”. Da mesma forma, os resgates e a comovente ajuda dos voluntários de todos os lugares do Brasil não garantem a vitória contra as enchentes que varreram do mapa cidades inteiras do Rio Grande do Sul. A destruição aqui também foi “colossal” e o trabalho está só começando.
Apesar do desastre, o resgate em Dunquerque salvou mais mais de 300 mil soldados e muito provavelmente contribuiu significativamente para evitar uma vitória nazista no front ocidental. Além disso, a solidariedade do povo britânico demonstrada naquela retirada reverberou por todo Reino Unido e ficou conhecida com o “Espírito de Dunquerque”. Essa expressão é lembrada até hoje e ainda serve como um modelo a ser imitado, um padrão a ser reparado pela posteridade.
Eu me pergunto se algo similar poderia ocorrer no Brasil. Para uma população carente de modelos a serem seguidos e com uma confiança interpessoal extremamente baixa, o que vimos em Porto Alegre e nas demais cidades gaúchas é significativo: Brasileiros comuns ajudando brasileiros comuns. Vida longa ao Espírito de Porto Alegre!
O Uso do Conhecimento na Sociedade (e nos Desastres)
Em seu artigo mais famoso, o economista F A Hayek argumenta em favor da superioridade da economia de mercado para a gestão de recursos de uma sociedade. Ele explica que boa parte do conhecimento necessário para a tomada de decisões econômicas racionais não só está disperso entre os indivíduos da sociedade como também é um conhecimento muitas vezes não articulável, implícito e que, portanto, dificilmente poderia ser transmitido ou catalogado por um órgão central.
Esse conhecimento local, específico e contingente também existe na hora de ajudar vítimas de desastres como o que ocorreu no Rio Grande do Sul. Nem todas as necessidades das vítimas são as mesmas, cada local tem um contexto específico e apenas as pessoas daquela região são capazes de compreender rapidamente o que está acontecendo. O poder público é incapaz de extrair essas informações e, mesmo que conseguisse, ele tem uma baixa capacidade customizar a ajuda para cada localidade. A sociedade, por outro lado, embora tenha esse conhecimento, é ruim em coordenar-se em prol de um objetivo comum.
Ou pelo menos era ruim.
O que vimos no Rio Grande do Sul foi a ação concreta de milhares de pessoas agindo localmente, doando dinheiro e recursos para locais, realidades e situações específicas. Isso foi possível graças a velocidade de difusão de informação de utilidade pública nas redes sociais e a praticidade do PIX como meio de pagamento. Combinadas, essas tecnologias reduziram significativamente os custos de coordenação da sociedade civil. Influencers de redes sociais utilizaram seu prestígio e reputação para angariar dezenas de milhares de reais e, em alguns casos, até mesmo milhões de reais. O uso do dinheiro era documentado em tempo real através das redes sociais. As próprias demandas das vítimas de cada localidade divulgadas pelo Instagram, WhatsApp, Twitter etc.
Me parece impossível voltarmos ao jeito antigo de ajudar as vítimas de desastres.
Reconstrução
O debate sobre a reconstrução do Rio Grande do Sul começou. O trabalho é gigantesco. Muitas políticas foram ou estão para serem anunciadas e muitas delas são inspiradas nas medidas econômicas adotadas pelos governos durante a Pandemia da Covid-19.
Embora seja verdade que existam semelhanças entre a pandemia e as enchentes no RS, existem também diferenças importantes. Em particular, as enchentes destruíram capital físico, seja da indústria (máquinas de grande porte e as próprias fábricas), seja na agropecuária (árvores frutíferas, por exemplo). Políticas de crédito implementadas na pandemia foram particularmente úteis para manter o fluxo de caixa, pagar compromissos e etc. das empresas durante a vigência das políticas de distanciamento social. Todavia, na crise atual, elas não terão a mesma eficácia que antes, pois o problema é diferente.
Em termos microeconômicos, podemos pensar que a enchente jogou todas as empresas que perderam parte significativa do seu capital “no longo prazo”. Sem capital fixo para prendê-la a uma localidade, a decisão da empresa não é mais paralisar a produção ou não, mas, sim, fechar totalmente a planta, ou começar novamente, talvez, em outro lugar. Um artigo recente de autoria do professor Bruno Barsanetti, por exemplo, mostra os efeitos persistentes de um desastre natural na geografia econômica de uma região. Em particular, o artigo mostra que uma forte geada no Paraná em 1975 teve efeitos de longo prazo na localização espacial da agricultura, especialmente no cultivo do café. As baixas temperaturas destruíram o capital físico (árvores de café) dos cafeicultores, gerando uma queda duradora no emprego na agricultura.
A ideia é que o capital fixo funciona como uma espécie de âncora para as empresas. Uma vez que ele não existe mais, há o risco de cairmos em um novo “equilíbrio espacial” com consequências profundas nas localidades afetadas como, por exemplo, menor crescimento econômico e grandes custos de ajustamento para a população local.
Nesse sentido, é imperativo que os gestores locais (governador e prefeitos) estejam comprometidos não apenas com a reconstrução das áreas afetadas, mas também com o desenvolvimento de um sistema moderno e eficaz de prevenção contra enchentes. Essa é a única política que pode impedir uma mudança significativa na distribuição espacial das empresas e suas consequências adversas para a população e economia local. Um artigo publicado na NBER dos pesquisadores Jia, Ma e Xie, por exemplo, estimam que cerca de 80% da redução de crescimento econômico das áreas afetadas pela enchente resultam do “efeito de expectativas”, isto é, da mudança na percepção de riscos por parte dos empresários. Regiões como o Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, passam a se tornar mais arriscadas para empresas e trabalhadores e isso pode impactar negativamente no crescimento dessas localidades.
Há um grande risco de que essas políticas, as que realmente importam para o crescimento de longo prazo das regiões afetadas, sejam negligenciadas pelo poder público. A razão passa pelas falhas de governo. O potenciais dividendos políticos de obras de prevenção contra desastres naturais que ocorrem com relativa baixa frequência estão desalinhados com o horizonte temporal de políticos que disputam eleições, principalmente eleições majoritárias. Um sistema que foi construído por um governador que será útil apenas cinquenta anos depois é, muito provavelmente, muito menos valioso do ponto de vista eleitoral do que a distribuição de recursos para grupos de interesse. O caso emblemático disso é o do prefeito Kotaku Wamura da cidade de Fudai, no Japão, que foi duramente criticado por construir um muro contra tsunamis. Há também a questão da preferência do eleitorado por políticas cujo retorno seja imediato em detrimento de políticas com retorno maior, mas mais de longo prazo1.
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Obrigado pela atenção e nos vemos na próxima. Lembre-se do “Espírito de Porto Alegre”, faça uma doação do que puder para alguém ou para uma instituição que esteja precisando. Nenhum homem é uma ilha.
Parte da explicação para essas escolhas eleitorais por parte do eleitor é a existência de restrição de crédito. A impossibilidade de suavizar consumo plenamente faz com que políticas públicas cujo retorno sobre a produtividade seja de longa maturação se tornem menos desejáveis do que políticas de curto prazo como, por exemplo, transferências diretas de renda. Camargo e Stein (2022) apresentam o mecanismo e indícios sugestivos para políticas públicas em capital humano.