O Mercado Estranho
O mercado de seguros é uma forma de transferir recursos entre diferentes realidades.
"Este universo é apenas um de um número infinito. Mundos sem fim. Alguns benevolentes e doadores de vida. Outros cheios de malícia e fome. Lugares escuros onde poderes mais antigos do que o tempo jazem vorazes... e esperando."
— Doutor Estranho, 2016
Além de uma especulação metafísica, a possibilidade de múltiplos universos e paralelos é um conceito que povoa a mente de escritores e roteiristas. Ele pode tanto ser usado em histórias de aventura, quanto comédia e terror. Por exemplo, a existência de universos desconhecidos, onde absolutamente tudo é diferente e desconhecido é… estranha; e coisas estranhas são o combustível das histórias de terror mais eficazes. Claro, na pior das hipóteses, o conceito é um truque para corrigir ou reiniciar franquias multimilionárias de cinema, além de criar cliffhangers bombásticos, mas que se resolvem de forma decepcionante1. Ele também é uma ótima oportunidade para aprender sobre o que estamos fazendo quando compramos um seguro.
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Na sua vida, você vai participar de três tipos de mercados2. O primeiro é o mais simples e é aquele em que você compra ketchup no supermercado e aulas de baixo pela internet. Você também pode ser o baixista que vende as aulas, é claro. Na verdade, se incluirmos o mercado de trabalho nessa categoria, a maioria de nós é um vendedor também. Esse é o mercado em que você pode comprar e vender coisas agora, no presente. Os outros dois mercados são mais esquisitos e eu vou apresentá-los em ordem crescente de estranheza.
O próximo é o mercado de crédito. Estamos acostumados a financiar uma casa, um carro ou até mesmo um celular. Fazemos isso quando o bem que queremos adquirir hoje custa uma quantidade de recursos maior do que a que temos no momento. Eu digo “no momento”, pois, a menos que dar um calote esteja nos seus planos, você tem sim dinheiro suficiente para pagar o bem em questão. O problema é que boa parte desse dinheiro está presa no futuro. Ninguém toma suas decisões apenas mirando o presente. A conta para saber se você pode pagar por um determinado bem leva em conta a sua expectativa de renda futura.
O financiamento de um apartamento é possível, porque o banco tem uma expectativa suficientemente otimista de que você conseguirá gerar renda para pagar o valor do imóvel. Como resultado, você faz um gasto enorme com consumo hoje (“gasta” centenas de milhares de reais do seu fluxo de renda da vida inteira) e, em troca, você abre mão de consumir menos nos, por exemplo, trezentos e sessenta meses seguintes. Isso significa que o mercado de crédito, na verdade, nada mais é do que uma forma de você transferir consumo ao longo do tempo com você mesmo. Os contratos de empréstimos destravam recursos futuros que estavam congelados no tempo. Claro, a quantidade de recursos que você consegue destravar no futuro chega no presente em menor quantidade por causa da taxa de juros. A taxa de juros é o custo de fazê-los viajar para o tempo presente. Ela existe porque, para que seja possível fazer essa viagem, alguém está deixando de consumir hoje para consumir mais no futuro. Com esse mercado, portanto, você consegue usar recursos do futuro para usar o mercado de bens e serviços hoje.
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O mercado mais estranho, sem dúvidas, é o mercado de seguros. Para entender o que ele está fazendo, precisamos nos colocarmos no lugar de um personagem de ficção científica, em um mundo em que realidades paralelas ou múltiplos universos não só existem, mas também é possível ter alguma interação com eles. Cada ação que você toma lhe coloca na direção de algum dos universos existentes. Você não sabe exatamente em qual deles irá cair, mas tem uma ideia de quais são os mais prováveis3. Por exemplo, suponha que o personagem comprou um carro e, no momento da compra, parado ali na concessionária, está observando diferentes realidades em que versões diferentes dele estão vivendo. Em algumas delas, a versão do personagem sofreu uma perda de riqueza — o carro foi danificado em um acidente ou foi roubado — já em outras o carro não sofreu nenhum arranhão e, portanto, sua riqueza foi preservada. Mesmo não sabendo em quais das realidades o personagem vai parar, ele descobriu que em 10% das realidades ele perde o carro de alguma forma. Ou seja, de dez universos possíveis, o personagem sofre uma perda grande de riqueza em um deles.
Diante dessa notícia, uma alternativa para o personagem é apenas torcer para que ele caia em algum dos mundos onde seu carro será preservado. No entanto, o que aconteceria se ele tivesse a capacidade de transferir riqueza entre as diferentes realidades? Nesse cenário esquisito, quando a riqueza de cada realidade não está congelada ou travada naquela realidade específica, o indivíduo não pensa nela de forma compartimentalizada. Na verdade, a riqueza dele corresponde a soma da riqueza em todas as realidades, e cabe ele distribuí-la como bem entende. Por exemplo, ele pode tirar dez mil reais da realidade ER-231 e passar para a realidade XY-1450, onde, sei lá, ele perdeu o carro em um esquema de pirâmide envolvendo bitcoins.
Nesse contexto, o que você faria? Eu vou tentar ajudá-lo nessa resposta explicando melhor o dilema central. Você poderia, por exemplo, arriscar e transferir toda sua riqueza para uma única realidade. Como resultado, existirá uma chance grande de você ser muito pobre, pois em todas as realidades, exceto em uma, você terá zero riqueza. Por outro lado, ainda que improvável, existe chance de você ser rico, pois existe uma realidade que concentra toda sua riqueza. É uma aposta arriscada. Outra possibilidade é você distribuir sua riqueza igualmente entre todas as realidades, de tal forma que em todas elas você irá consumir a mesma quantidade de bens e serviços. Esse é um mundo sem surpresa alguma. A resposta para essa pergunta, portanto, depende do quanto você gosta de risco. Em geral, as pessoas não gostam de arriscar4. Nesse caso, elas preferem viver sem grandes surpresas e, por isso, vão preferir organizar um esquema que garante o mesmo padrão de consumo em todas as múltiplas realidades.
Voltando para o mundo real, enquanto o mercado de crédito permite você trazer recursos do futuro para o presente, o mercado de seguros é uma forma de transferir recursos entre diferentes realidades. O seguro de carro é uma forma de enviar dinheiro (equivalente ao valor do carro, por exemplo) para a realidade em que seu carro foi roubado. Para fazer isso, você paga uma quantia pelo seguro, a qual depende de uma série de fatores. Esses fatores afetam o risco de algo ruim acontecer com o seu carro (por exemplo, a idade do motorista afeta o risco de acidente). O risco é uma chance, uma probabilidade. Ela também pode ser interpretada como a razão entre universos em que algo ruim acontece e o número total de possibilidades.
Quando as pessoas têm medo de arriscar e elas podem transferir livremente renda entre realidades, vimos que elas vão garantir o mesmo nível de consumo em todas as realidades. Ou seja, o sujeito tem um “seguro completo” (full insurance), faça chuva ou faça sol, você vai consumir a mesma coisa. A história muda quando existe um custo de transferir consumo entre realidades. Suponha que, para fazer essa transferência, você precisa contratar uma pessoa que vai mandar essas grana para fora do seu universo e mandar para outro, uma espécie de TransferWise do multiverso. Essa empresa vai te cobrar uma taxa, o que significa que, para cada real que você queira mandar para fora, ela vai cobrar alguns centavos em cima. Nesse caso, mesmo tendo medo de arriscar, as pessoas vão querer comprar menos seguro, ou seja, vão colocar riqueza nos universos ruins, mas menos do que no caso do “seguro completo”.
O mercado de crédito e o mercado de seguros, portanto, são formas de acessar recursos que não estão aqui e agora. Esses recursos, sejam vindos do futuro, sejam recebidos de outras realidades, são alocados no mercado de bens e serviços do momento e universo em que você se encontra. Claro, esses mercados não funcionam perfeitamente. O mercado de seguros, por exemplo, tem alguns problemas de natureza informacional que o impedem de funcionar perfeitamente. Por esse motivo, não existem seguros para todas as incertezas da vida, mas, sim, apenas para coisas específicas.
Pensando bem, seria interessante se a sociedade pudesse dividir inteiramente o risco entre si. Você poderia dormir tranquilo sabendo que, assim como o seguro do seu carro, há um contrato que garante um determinado padrão de vida, não importa o que o futuro lhe reservar. Mas não temos como fazer isso. Sem esse seguro transcendental, o seu futuro depende da distribuição de realidades nas quais você pode cair. A sua distribuição pode ser boa ou ruim. Na verdade, comparar a distribuição de realidades possíveis é um tema interessante em si mesmo. Como saber qual distribuição de realidades é melhor? Como ordená-las? Acho que esse é um cliffhanger apropriado para encerrar esta newsletter, e deixas os três leitores dela intrigados para a próxima parte.
(To be continued)
Aliás, quando eles aparecem na história, é o sinal para parar de assistir o filme ou seriado.
Isso é uma forma de agrupar mercados, claro. Para uma outra forma, mais interessante, ver episódio 16 da terceira temporada de The Office, minuto 14:10.
O porquê de você saber disso é uma questão interessante. Talvez a chance seja a mesma em todos os universos, mas alguns universos aparecem mais vezes na sua frente e, portanto, a chance de cair ali é maior.
Ser averso ao risco significa que entre a opção de participar de uma loteria e ganhar com certeza o valor médio do prêmio, você prefere ganhar o valor médio com certeza. Imagine que uma empresa te contrate e te ofereça dois tipos de contratos: o primeiro contrato diz que ela vai te pagar no final do ano ou 50 mil reais; o segundo contrato é mais esquisito, pois antes de te pagar, ele faz você jogar uma moeda para cima e, se der “cara”, você ganha 0 reais, mas, se der “coroa”, você ganha 100 mil. O que você escolheria? Pois é.