No artigo anterior, vimos que o seguro pode ser interpretado como uma forma de transferir recursos entre diferentes realidades paralelas. Você transfere uma parte dos recursos das realidades em que os desastres não aconteceram, e divide esse montante entre os universos em que as coisas deram muito errado. A rejeição ao risco faz com que você queira manter em todas as realidades mais ou menos o mesmo padrão de consumo, no sentido de que um real adicional terá o mesmo impacto no seu bem-estar em todos os mundos existentes.
Embora a analogia seja útil para entender o que seguro está fazendo, a verdade é que o mercado de seguro funciona apenas em certas ocasiões e para coisas específicas. Seguro da casa, do carro e de vida são alguns exemplos. Não existem seguros para coisas mais abstratas e de difícil mensuração, pois o contrato seria muito difícil de ser escrito, sem falar nos problemas informacionais envolvidos1. Não, é impossível criar um mercado de seguros que mimetize o nosso exercício de imaginação dos universos paralelos. Na nossa história, um indivíduo não tem muito o que fazer em relação a sua sorte. A distribuição de realidades que ele observa é a que está disponível.
Diante desta situação, será que podemos comparar duas distribuições entre si? Isto é, será que somos capazes de olhar para duas distribuições diferentes e afirmar que uma é melhor do que outra? Em cada realidade o indivíduo terá um nível de bem-estar específico em função do seu nível de renda ali. A distribuição de realidades gera uma distribuição de bem-estar e, portanto, poderíamos comparar-las para saber qual seria mais preferível.
Imagine que as diferentes realidades possam ser observadas como um explorador que, no alto de uma montanha, observa uma paisagem. Cada uma das realidades corresponde a uma região no vasto território até onde a vista do explorador alcança. Na paisagem, existem oásis com água fresca, desertos escaldantes e congelantes, ravinas e cordilheiras, colinas e vales verdejantes com riachos e florestas. Existem também cavernas e abismos profundos onde ninguém nunca o fundo. Da mesma forma, o nosso personagem observa as diferentes realidades, algumas delas absolutamente gloriosas, enquanto outras terríveis demais para descrever. Metodicamente, o personagem atribui a cada uma delas uma nota que corresponde a sensação de bem-estar que ele sentiria se acordasse amanhã ali: feliz em um oásis com sombra e água fresca, ou sofrendo em uma gélida tundra.
As notas de bem-estar de cada realidade formam uma distribuição, cujas informações podem ser sumarizadas. Podemos, por exemplo, tirar a média dessas notas e saber o valor médio de bem-estar da paisagem que o sujeito está observando. Essa média poderia ser um critério para comparar diferentes “paisagens” ou distribuições de realidades. Entre duas distribuições, poderíamos dizer que aquela com a maior média é a melhor. Simples, não? Bem… Existem alguns detalhes importantes aqui. Embora a medida seja simples, ela esconde algumas implicações que precisam ser melhor compreendidas.
Imagine duas distribuições de realidades. Em uma delas, a paisagem é tediosa, todos os acidentes geográficos são similares, o vasto território é composto de apenas um padrão determinado. Todas as realidades geram o mesmo bem-estar e, portanto, a média da distribuição será esse mesmo valor. Em contrapartida, a segunda distribuição de realidades é mais emocionante. Trata-se de uma paisagem com acidentes geográficos e regiões pitorescas, alguns que se parecem com o Jardim do Éden, enquanto outros com o inferno na terra. A distribuição de bem-estar nesse caso é bem mais variada. Vamos supor que a média dessa distribuição seja maior do que a da paisagem tediosa. Pela lógica da maior média, faria sentido escolher a segunda distribuição, pois, na média, o bem-estar é maior. Faz sentido isso? Pode ser que sim, mas entenda que, ao escolhê-la, você correr o risco de acabar no inferno na terra. Ou seja, há um elemento de risco a ser considerado.
Existem outros critérios de comparação além de olhar simplesmente para a média. Tudo depende do quão pessimista ou medroso você é. Relembrando, a distribuição de que estamos falando são dos tipos de universos em que você poderá acabar caindo. Olhar para a média faz sentido quando você não se importa com o risco, e supõe que a chance de cair em um universo em particular é a mesma para os demais universos. Agora, o que acontece quando você se importa com risco? Nesse caso, a média não vai ser suficiente para tomar a tomar a decisão.
Para entender o que precisa ser considerado, é útil nos colarmos na posição de um pessimista convicto. Enquanto o sujeito que não se importa com risco pensa apenas na média de bem-estar, o pessimista pensa no pior cenário possível. Ele tem motivos para acreditar que a natureza (ou a entidade que vai definir em que realidade ele vai parar) tem objetivos antagônicos aos dele e, portanto, está contra ele. Se é essa sua visão a realidade, então definitivamente não é para a média das distribuições que você deveria estar olhando. Nesse cenário, você tem motivos de sobra para se importar apenas com o bem-estar da pior realidade da distribuição, pois é onde você acredita que irá parar. Entre as duas distribuições — monótona e emocionante — você vai escolher aquela em que o bem-estar do pior lugar é maior. No exemplo em particular, você vai escolher a distribuição monótona, mesmo que média dela seja menor.
Harsanyi vs. Rawls
O pessimista convicto e o sujeito que não se importa com risco são representações de diferentes versões do utilitarismo2. O exercício imaginativo das realidades paralelas pode ser utilizado para comparar diferentes distribuições de bem-estar na sociedade. Para isso percebermos isso, basta modificá-lo levemente. Ao invés de imaginar que os diversos universos são possíveis destinos para você, pense que cada um desses mundos será habitado por alguma pessoa. Nesse caso, o que você está observando é a distribuição hipotética de bem-estar social da sociedade. No entanto, perceba que quem irá habitar qual realidade ainda é desconhecido. Ou seja, a sua posição no mundo e a posição das demais pessoas é incerta e encoberta por uma espécie de véu.
Nessa “posição original”, onde você e seus vizinhos não sabem em que lugar vão parar, poderíamos refletir sobre qual é o critério de escolha mais sensato se fosse possível escolhermos entre diversas distribuições de realidades. Nós gostaríamos de uma distribuição cuja média de bem-estar das pessoas é alta, ou uma distribuição em que a pior das posições seja melhor do que a pior posição da distribuição alternativa? Lembre-se que nosso objetivo é pensar em um critério que seja razoável, que seja aceitável para todos, em princípio.
John Harsanyi, vencedor do prêmio Nobel de economia em 1994, propõe o critério clássico utilitarista, onde se deveria garantir o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas o que, na prática, significa almejar a maior média de bem-estar possível. Isso significa que, entre duas distribuições, ele vai preferir aquela em que o bem-estar social médio seja o mais alto. Por outro lado, temos o filósofo John Rawls, que defende a posição do sujeito pessimista. Para Rawls, o que importa é maximizar ou aumentar o bem-estar do pior dos mundos em que a pessoa pode parar. Implícito em sua proposta está uma espécie de paranóia, uma ideia de que a natureza ou “a Realidade” está jogando contra e que, portanto, é melhor se preparar para o pior. Ou seja, entre duas distribuições de bem estar, ele vai optar por aquela em que o menor bem-estar possível é maior.
Qual dos dois está certo? Se seguirmos um critério de razoabilidade, nem Rawls nem Harsanyi parecem ser suficientes. Por exemplo, as pessoas comuns me parecem estar em algum lugar no meio entre esses dois3. Além disso, ao tentar responder essa pergunta, implicitamente já estamos aceitando que essas versões do utilitarismo são critérios adequados para responder perguntas sobre qual sociedade é melhor. Esse é um grande cheque em branco para o utilitarismo “lato senso” que, bem, tem lá sua utilidade, mas está longe de ser uma solução definitiva.
Referências:
Jehle and Reny (2011): Advanced Microeconomic Theory, páginas 288 até 290.
Arrow (1973). “Some Ordinais Utilitarian Notes on Rawls”, Journal of Philosophy, 70: 245-263.
O próprio seguro de carro, que é extremamente difundido na sociedade, sofre com esses problemas. Quando você faz um seguro de carro, por exemplo, o seu comportamento em relação a ele muda. Você tem menos cuidado com ele, afinal, ele tem um seguro. Essa mudança de comportamento muda as probabilidades de acidente. Se esse mercado de seguro já não é trivial, imagine um seguro contra problemas mais complexos.
Utilitarismo + “aversão a risco infinita” produzem a formulação de preferências propostas por John Rawls. Logo, sua proposta é um caso particular do arcabouço utilitarista. Por isso eu vou chamar ele de utilitarista. Um utilitarista pessimista e com mania de perseguição, é verdade, but still...
Na realidade, o modelo utilitarista admite qualquer grau de aversão ao risco. Arrow (1973) mostra isso ao lembrar que as utilidades podem ser transformadas em utilidades esperadas, as quais podem incorporar o elemento de aversão ao risco desejado.