O Poderoso Chefão e as Ordens Sociais
Ou Mario Puzo, Coppola e Luigi Zingales entram em uma trattoria...
Todos deveriam assistir ao filme “O Poderoso Chefão” de Francis Ford Coppola — especialmente os seis minutos iniciais. A cena1 começa com um diálogo entre Amerigo Bonasera — um imigrante da Sicília, dono de uma funerária — e Don Vito Corleone, o chefe da Família Corleone. Em sua primeira fala, Bonasera narra uma tragédia familiar e faz um pedido ao mafioso. Sua narrativa possui três partes. Na primeira, o agente funerário professa sua fé na “América”. Tendo migrado para os EUA, Amerigo mostra gratidão pela oportunidade que o país lhe propiciou. Talvez como prova dessa gratidão, ele conta com certo orgulho que criou sua filha “como uma americana”, livre da influência dos costumes de seu país de origem. O auge dessa demonstração de fé foi permitir que sua filha namorasse um rapaz “que não era italiano”.
Na segunda parte da narrativa, Bonasera relata com tristeza e indignação a violência que o namorado da filha e comparsas fizeram contra ela. “Ela era linda…”, disse o pai, “agora ela nunca mais será linda novamente”. Na última parte, o agente funerário conta que, embora ele tenha comunicado o fato à polícia (como um bom americano faria) e os algozes de sua filha tenham sido presos, o juiz que julgou o caso suspendeu as sentenças deles. “Sentença suspendida!”, diz ele incrédulo, “eles foram soltos no mesmo dia!”. Finalmente, ele faz seu pedido: “…para termos justiça, precisamos ir ao Don Corleone!”.
Um homem dividido
O historiador Paul A. Rahe foi talvez o primeiro a explicar2 que, ao longo daquela conversa, Amerigo Bonasera está dividido entre dois mundos, ou melhor, entre duas ordens sociais. A primeira é simbolizada pela “América” e a segunda é retratada pela “justiça siciliana de Don Corleone”. Na ordem americana, o governo é “feito de leis e não de homens” e os laços pessoais contam muito pouco. Don Vito faz uma boa descrição desse mundo ao repreender o Amerigo por nunca ter sido um bom afiliado:
“Eu entendo. Você encontrou o paraíso na América, tinha um bom negócio, ganhava bem a vida. A polícia o protegia; e existiam tribunais”.
Em poucas palavras, Don Corleone descreve o que North, Wallis e Weingast chamam de “Ordem Social de Acesso Livre” (Open Access Order) no livro Violence and Social Orders. Nesses tipos de sociedades, “quem você é” ou “quem você conhece” não é determinante para que você possa criar e acessar livremente organizações3 como, por exemplo, empresas, associações, partidos políticos e etc. A sua identidade nesse tipo de ordem é “um conjunto de características impessoais”. Na América, Bonasera passara a se enxergar apenas como mais um cidadão americano. Como tal, ele poderia criar e cuidar de sua empresa e da família sem que fosse necessário pedir permissão para pessoas importantes.
Nas Ordens de Acesso Livre, a violência é concentrada nas mãos do Estado (polícia e tribunais) sob controle do sistema político, o qual, por sua vez, é restringindo por outras instituições e sistema de incentivos. Nessa sociedade, a força política no poder precisa ser referendada por forças sociais e econômicas. Como não há limitações para que indivíduos se organizem do jeito que bem entendam, nessa sociedade há pouco espaço para que elites consigam extrair rendas extraordinárias. De acordo com os autores, nesse tipo de ordem, “rendas extraordinárias” (rents) só são possíveis por pouco tempo e só podem ser obtidas através de inovações (Pense aqui nos empreendedores como Steve Jobs ou Elon Musk. Nenhum deles fez fortuna através de bancos públicos de fomentos e conexões políticas).
A outra ordem social, chamada de “Ordem de Acesso Limitado” (Limited Access Order) e a qual Bonasera decide eventualmente abraçar, é caracterizada pela pessoalidade das relações. Os relacionamentos pessoais definem quais organizações você pode criar e quais benefícios e deveres você terá (pense aqui em frigoríficos, políticos e bancos de fomento na América do Sul).
Novamente, as palavras de Don Vito servem como ilustração:
“Nós nos conhecemos há muitos anos, mas essa é a primeira vez que você vem até mim pedindo conselho, ajuda. Eu não me lembro da última vez que você me convidou para sua casa para tomar um café, mesmo minha esposa sendo madrinha do seu único filho. Mas vamos ser francos aqui: Você nunca quis minha amizade.”
É compreensível. Até a injustiça acontecer, Amerigo confiava na Ordem Social de Acesso Livre dos Estados Unidos. Uma ordem que não exigia o cultivo de laços pessoais com homens perigosos. “Eu não queria problemas”, justifica-se ao Don Corleone. Sua busca por justiça (ou vingança), no entanto, fazem com que o imigrante italiano abandone o "Mundo Novo"; e, como escreve Paul Rahe, se despeça dele fazendo seu próprio nome, Amerigo Bonasera4, transformar-se numa espécie de profecia finalmente realizada.
Na nova ordem abraçada por Bonasera, a violência não é exclusividade de um Estado. Ela é administrada por grupos que formam uma elite ou elites. Esses grupos regulam a violência através do controle das atividades econômicas, limitando o acesso e suprimindo a criação de organizações. Essa limitação gera “rendas” extraordinárias, as quais são repartidas entre a própria elite. No filme, as cinco famílias de Nova Iorque ilustram esse sistema. O controle de atividades comerciais (lícitas ou ilícitas) gerava renda para os membros da elite local. A guerra de todos contra todos era limitada por um frágil5 "equilíbrio de poder", que envolvia a divisão "justa" de territórios e de agentes públicos corrompidos. Nessa ordem social, inovações criadas por novos entrantes são vistas como ameaças as rendas das elites estabelecidas e, por esse motivo, são severamente limitadas através do uso da força e intimidação.
Padrinhos e presentes
A primeira tentativa de o agente funerário entrar na Ordem de Acesso Limitada, no entanto, é desastrada. Desesperado, Amerigo queria vingança. Queria que os algozes de sua filha sofressem. “Quanto eu devo-lhe pagar?”, perguntou ao mafioso. A resposta de Don Vito é pedagógica:
Bonasera … Bonasera … O que eu fiz para que você me trate com tanto desrespeito? Se você viesse até mim em amizade, então essa escória que arruinou sua filha estaria sofrendo nesse mesmo dia. E se por acaso um homem honesto como você fizesse inimigos, então eles se tornariam meus inimigos. E então eles iriam temê-lo.
Amerigo ainda não havia compreendido a lógica dessa ordem limitada (ou talvez entendesse, mas queria evitá-la). Relações de natureza comercial tendem a ser impessoais e são comuns na Ordem Social Aberta. Mas Don Vito não está interessado no dinheiro do agente funerário. Ele explica:
“(…) agora você vem até mim e você diz — “Don Corleone dê-me justiça.” — Mas você não pede com respeito. Você não me oferece sua amizade. Você nem cogita me chamar de Padrinho. Ao invés disso, você vem até minha casa no dia em que minha filha irá se casar, e você me pede para cometer assassinato, por dinheiro.”
Mais do que dinheiro, a Ordem Social de Acesso Limitado valoriza relações de amizade. Afinal, como diz Don Altobello no terceiro filme da trilogia: “o homem mais rico é aquele com os amigos mais poderosos”.
A cena termina com Amerigo finalmente compreendendo o que deve fazer:
“Bonasera: Seja meu amigo… Padrinho?
[Bonasera beija a mão do Don]
Vito Corleone: Está bem. Algum dia, e esse dia pode nunca chegar, eu chamarei você para me fazer um favor. Mas, até esse dia — aceite essa justiça como um presente no dia do casamento de minha filha.”
Com isso, Bonasera oficialmente abandona a América e entra novamente na Sicília tradicional. Ao passo em que o “boa noite, América” pode ser encarado como uma despedida para Amerigo, do ponto de vista de Mario Puzzo e Francis Ford Copolla o boa noite é uma saudação de boas-vindas aos espectadores americanos. Afinal, trata-se do início do filme e audiência americana precisa ser apresentada a uma Ordem Social que, pelo menos para o americano ideal, lhe é pouco familiar.
Epílogo: Um ideal?
Ordens Sociais de Livre Acesso ou de Acesso Limitado são conceitos abstratos que servem como moldura para interpretar momentos históricos. Evidentemente, nenhuma sociedade é puramente de livre acesso ou puramente de acesso limitado. Na América de hoje, por exemplo, vemos elementos de Ordens Socais de Acesso Limitado. É possível que Bonasera também tenha visto a mesma coisa e foi isso que abalou sua fé. Quando essa percepção se torna frequente, começamos a ter problemas. Nesse contexto, não é algo surpreendente que o economista Luigi Zingales (aliás, um imigrante italiano) tenha se esforçado para tentar recuperar intelectualmente a “América” em sua obra A Capitalism for the People.
De qualquer forma, talvez a melhor forma de pensar sobre as sociedades usando esse frame proposto por North e seus coautores é colocá-las em um espectro. Nesse contexto, onde o Brasil se encaixaria? Deixo essa pergunta para os leitores desta newsletter responderem…
[MUSIC CUE: "THE GODFATHER WALTZ" by NINO ROTA]
Qualquer descrição feita aqui não fará justiça ao filme, então eu aconselho a quem não viu ou não se lembra da cena que assista antes de continuar.
“Don Corleone, Multiculturalist”. Business & Professional Ethics Journal, vol. 16, Nos. 1/3.
Segundo os autores, a capacidade de criar organizações é importante, pois elas são ferramentas para aumentar a produtividade do ponto de vista individual e facilitar a resolução de problemas de ação coletiva.
A tradução literal do italiano de Amerigo Bonasera é “Américo Boa Noite”.
O equilíbrio pacífico é frágil, pois é alicerçado na crença de todos os membros da elite que uma guerra não é lucrativa. Por esse motivo, qualquer choque pode abalar o status quo. A trama principal do filme é justamente iniciada por uma perturbação na ordem gerada por Virgil Sollozzo que queria introduzir a venda de entorpecentes na economia local. Don Corloene era contra essa inovação. O problema é que, aos olhos das demais famílias, essa inovação era lucrativa demais — o bastante para justificar mudanças na ordem.
Excelente artigo, Guilherme !!
Parabéns!