O significado de "O Guarda-Costas"
A Economia do Trabalho nos ajuda a corrigir um erro histórico
O Guarda-Costas (1992) foi sucesso de bilheteria, arrecadando mais de 400 milhões de dólares, segundo a Wikipedia. No entanto, o filme é mais conhecido por sua trilha sonora. A icônica canção I Will Always Love You interpretada pela popstar Whitney Houston, que também é a atriz principal do filme, fez com que o disco da trilha tivesse mais de 45 milhões de cópias vendidas pelo mundo1, tornando-o até hoje o álbum de trilha sonora mais vendido da história.
Whitney Houston interpreta Rachel Marron que, no filme, também é uma superstar da música pop. Ela divide o protagonismo com o seu guarda-costas Frank Farmer, interpretado por Kevin Costner. O filme é um thriller característico da época e a trama gira em torno de Rachel, que recebe ameaças de morte de quem parece ser um fã obsessivo. Após um grave incidente, o empresário de Rachel, Bill Devaney, acaba contratando um guarda-costas para a proteção da diva da música pop.
A totalidade das sinopses que existem a respeito do filme descrevem-no como um “thriller romântico” (uma história de amor misturada com suspense), uma opinião provavelmente semelhante a da esmagadora maioria dos espectadores. Existem muitos motivos para isso. Em primeiro lugar, está o fato de que inegavelmente há um romance no filme. Em segundo lugar, a simples presença de Whitney Houston como par romântico de Frank Farmer acaba passando para a personagem Rachel Marron uma importância que transcende o próprio roteiro. Em terceiro lugar, temos, é claro, o sucesso I Will Always Love You.
O problema é que a imensa maioria das sinopses está errada. O Guarda-costas pouco tem a ver com Rachel Marron, ou Whitney Houston. A música, a história de amor, e uma superstar interpretando uma superstar foram adicionadas porque é assim que se viabiliza um blockbuster2. Na verdade, o filme é sobre Frank Farmer.
Observe, caro leitor, que o filme se chama “O Guarda-costas” e não “A Diva e o Guarda-costas”. Observe também que o roteiro do filme foi escrito em 1975 por Lawrence Kasdan, um dos grandes roteiristas de Hollywood, capaz de inserir profundidade em uma “ópera espacial”. Note que uma das inspirações para o roteiro foi um filme de Akira Kurosawa chamado Yojimbo (1967), que significa “Guarda-costas” em japonês e conta a história de… um guarda-costas. Por fim, veja que Kasdan, em uma entrevista de 1981, dez anos antes do filme existir, descreve a história do filme como sendo sobre “um guarda-costas que é contratado para proteger uma mulher. (…) Eu estava interessado em que tipo de sujeito estaria disposto a fazer esse tipo de trabalho: estar disposto a morrer por um salário…”. Bem… Que tipo de sujeito é esse? O que o Lawrence Kasdan queria contar sobre Frank Farmer?
Dinheiro, honra e dever
O valor estatístico da vida é um conceito utilizado por empresas e governos para ajudá-los na tomada de decisões que envolvem vida e morte. Por exemplo, ele serve para balizar decisões judiciais sobre indenizações a serem pagas para vítimas de acidentes, erros médicos e etc. Existem muitas maneiras de calculá-lo e uma delas — mais ou menos “inventada” por Adam Smith3 — envolve a relação entre o salário e o risco de morte nas ocupações. A ideia é simples: Existem dois anúncios de emprego no jornal. As vagas são para exatamente o mesmo trabalho: instrutor de mergulho; a única diferença é que a primeira vaga fica em um resort com um mar tranquilo e a segunda fica em um mar infestado de tubarões martelo. Não é necessário grandes explicações sobre por qual motivo seria natural esperar que o salário para fazer exatamente o mesmo trabalho seja maior no anúncio da segunda vaga. Afinal, espera-se que os instrutores de mergulho exijam maior retorno pelo risco que eles estão dispostos a tomar. A grande questão é saber o quanto mais de retorno por um pouco mais de risco. Para isso, os economistas fazem estudos estatísticos não só com instrutores de mergulho, mas também com todos os tipos de ocupações. Uma vez que você compreende o “quanto a mais de dinheiro você precisa pagar alguém para que ele aceite aumentar um pouco a chance de morrer”, você consegue chegar no valor estatístico da vida. Pronto.
Tudo isso serve para dizer que parte do motivo pelo qual alguém gostaria de virar um guarda-costas é — tudo o mais constante — o mesmo pelo qual alguém gostaria de virar um instrutor de mergulho ou bancário, i.e., o salário vis-à-vis o risco de vida. Eu disse “parte do motivo”, pois, embora a teoria seja sólida, eu não acho que ela explica tudo. Afinal, guarda-costas é uma dessas ocupações em que o risco de morte é considerável. Ao contrário do instrutor de mergulho, cuja job description não envolve enfrentar tubarões, o guarda-costas foi contratado para enfrentar assassinos, sequestradores e fãs obsessivos. A causa final do guarda-costas é proteger o cliente. É verdade que na imensa maioria das vezes ele cumpre a missão apenas agindo como um elemento de dissuasão de ameaças, uma vez que a mera presença e protocolos de segurança já protegem o cliente. No entanto, existem algumas raras vezes em que ele precisa reagir ao perigo imediato e isso pode custar a sua vida. No limite, se nos apegarmos ao clichê hollywoodiano, o guarda-costas deve até tomar o tiro ou a facada no lugar do alvo.
Não, o salário não é o bastante. Parte da explicação deve ter relação com outras amenidades4 que vem com o cargo.
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Certa vez, em uma corrida de Uber, o motorista me disse que ele costumava ser motorista de carro-forte. Ele me explicou que os seguranças que fazem a proteção do veículo não fazem esse trabalho apenas por dinheiro. Segundo ele, embora o carro seja blindado e a equipe tenha armas pesadas, a grande verdade é que a maior parte do efeito dela é dissuasório. Se uma quadrilha de assaltantes quiser roubá-lo e tiver algum planejamento, os seguranças do carro-forte estão em franca desvantagem e o risco de morte é altíssimo.5 “Em caso de confronto, os seguranças estão lá para matar ou morrer. Eles se enxergam como guerreiros”, disse o motorista. Ou seja, eles gostam do conflito. Gostar de aspectos do emprego é um motivo adicional na hora de escolher profissão. Ora, um time que opera um carro-forte (motorista e seguranças) é como se fosse um guarda-costas, só que de dinheiro, então a mesma lógica se aplica. Por fim, além de gostar de dinheiro e do eventual combate, existem outros motivos para ser um guarda-costas, principalmente se estamos falando da proteção de chefes de estado. O sentido do dever e patriotismo podem ser motivações adicionais que estimulam, por exemplo, candidatos ao Serviço Secreto dos Estados Unidos.
Com esse mapa rascunhado sobre as motivações de um guarda-costas, já é possível mergulhar na história de Kasdan.
As motivações de Frank Farmer
Das três motivações — dinheiro, honra (ou “espírito marcial") e dever —, podemos especular que a mais importante para Frank Farmer talvez fosse a última. Afinal, ele havia servido no Serviço Secreto americano. “Dois anos com Jimmy Carter e quatro com Reagan”, disse ele a Sy Spector, o publicista de Rachel Marron.
No entanto, isso não explicaria por que ele continuou a trabalhar como guarda-costas particular. Não há patriotismo ou sentido de dever em proteger empresários. Com esse fato, já é possível riscar “dever” da lista. Restam dinheiro e o espírito marcial. Vejamos se elas podem servir.
Para continuar nossa investigação, é útil estudar um dos diálogos iniciais do filme. Após uma bomba explodir no camarim de Rachel Marron, seu empresário, Bill Devaney, tenta contratar os serviços de Frank Farmer. O protagonista inicialmente recusa a oferta, o que faz com que Bill vá pessoalmente até a casa de Frank para tentar convencê-lo:
DEVANEY: Então quer dizer que você não vai proteger Rachel Marron só porque ela é do show business?
FRANK: Eu não trabalho com celebridades.
DEVANEY: Mas os maiores salários estão no pessoal do show business…
Esse trecho do diálogo é importante, pois ele nos permite eliminar mais uma das motivações: o dinheiro. Se ele fosse o grande motivador, talvez Frank só trabalhasse com celebridades. O diálogo prossegue e chega a mais um ponto crucial:
DEVANEY: Farmer, estamos falando de uma mulher muito assustada. Com um filho de sete anos. Acredite, eu não estaria aqui se não achasse que isso é sério de verdade. [uma longa pausa] Farmer, ela me implorou pra encontrar você.
[Frank finalmente se endireita na cadeira e encara Devaney por um longo tempo. Ele pega cinco facas de arremesso e se levanta.]
FRANK: Tudo bem. Eu vou e vou dar uma olhada na situação. Se eu aceitar, são três mil por semana.
É somente após explicar a situação para Frank, relatando sua gravidade, que Bill consegue fazer o guarda-costas reconsiderar a oferta. Esse trecho da conversa é importante, pois informa a possibilidade de que a motivação de Frank seja apenas o espírito marcial. Talvez o motivo para ele não aceitar trabalhar com celebridades é que o trabalho seja monótono. Celebridades enfrentam menos ameaças do que figuras do mundo dos negócios, mais visadas para sequestros e assassinatos. Será que Devaney, ao convencê-lo de que o perigo era real, conseguiu oferecer a motivação que seu espírito marcial precisava?
***
Frank Farmer e Rachel se encontram pela primeira vez quando ele vai visitá-la, conforme prometera ao seu empresário. Lá, ele percebe uma série de problemas com a segurança da atriz e faz recomendações que a incomodam. A relação entre os dois segue uma dinâmica conhecida: depois de um começo conflituoso, onde ambos parecem não gostar um do outro, o enredo vai os colocando em situações que acabam aproximando-os cada vez. Em um determinado momento do filme, quando Rachel fazia um show, uma ameaça real faz Frank agir, salvando sua cliente. Após esse episódio, Rachel começa a perceber a gravidade da ameaça que a cerca e a importância de Frank.
Nesse momento da história, Kasdan fornece mais uma pista sobre a motivação do guarda-costas. Ela se dá quando Rachel pede que Frank leve-a para sair. Ele decide levá-la ao cinema, onde estava passando seu filme favorito do guarda-costas, Yojimbo:
[EXT. TEATRO KOKUSAI - NOITE]
[Frank e Rachel saem junto com um pequeno grupo de pessoas. Rachel usa um lenço e óculos escuros. A combinação ajuda bastante a disfarçá-la. Eles param em frente a uma das vitrines de exibição. Lá dentro há um pôster do filme Yojimbo]
RACHEL: Bem, ele não parecia querer morrer, na minha opinião.
FRANK: Há uma grande diferença entre querer morrer e não ter medo da morte.
[Eles seguem caminhando pela calçada.]
RACHEL: E porque ele não tinha medo da morte, ele era invencível?
FRANK: O que você acha?
RACHEL: Bom, ele com certeza detonou todos no final.
FRANK: É, foi um bom filme.
[Eles continuam andando pela calçada.]
RACHEL: Quantas vezes você já viu esse filme?
FRANK: Sessenta e duas.
Ao mesmo tempo em que o encontro coloca os dois no caminho tradicional percorrido por casais em filmes românticos, ele também releva um pouco mais sobre Frank. Yojimbo é o filme favorito de Frank (ele confessa que assistiu a ele “sessenta e duas” vezes). O filme é um dos clássicos de Akira Kurosawa e inspirou filmes ocidentais como, por exemplo, “Por Um Punhado de Dólares”. Ele conta a história de um ronin — um samurai que, desprovido de um senhor a quem servir, vaga pelo Japão oferecendo seus serviços a quem quer que seja. O protagonista do filme chega em uma cidade que é assolada por duas famílias criminosas e ele decide libertar os moradores de lá.
Mais evidência em favor da teoria “espírito marcial”. Poucos símbolos representam mais esse espírito do que “samurais”.
Após o encontro, a tensão do filme começa a aumentar. O vilão se torna cada vez mais ousado e, percebendo o risco iminente, Frank decide levar Rachel e a família próxima dela (Fletcher, o filho de sete anos e Nicki, a irmã) para a casa do pai dele, em um lago isolado nas montanhas. Ali, convivendo com o pai do guarda-costas, o filme revela um pouco mais sobre Frank. O pai dele, Herb, é viúvo. A mãe de Frank morrera há alguns anos em um momento particularmente significativo para o guarda-costas:
HERB: Você deve ser muito bem-sucedida pra precisar do Frank.
[Rachel sorri e olha pela janela.]
RACHEL: É tão silencioso aqui.
HERB: O Frank voltou e ficou seis meses depois daquela coisa com o Reagan.
[O olhar curioso de Rachel incentiva Herb a continuar.]
HERB: O Frank não estava lá no dia em que ele levou o tiro. Ele nunca superou isso. (uma longa pausa) A gente enterrou a Katherine naquele dia.
A “coisa com o Reagan” da qual Herb se refere é a tentativa de assassinato perpetrada por John Hinckley Jr.. Além de ferir gravemente o presidente, o atentado acabou vitimando um dos conselheiros de Reagan e ferindo dois membros do serviço secreto. No filme, Frank Farmer era parece ser um desses agentes que estavam com Reagan e isso só não ocorreu porque ele precisou ir ao funeral de sua mãe.
O fato de o guarda-costas “não ter superado” essa ausência não é exatamente inesperado para os espectadores, afinal, eles já conhecem um pouco sobre a personalidade do guarda-costas. O senso de dever, combinado ao espírito marcial que aparentemente Frank possui são mais do que suficientes para explicar o sentimento. É provável que ele se sentisse culpado por não ter estado lá no momento, é provável que ele pense que ele poderia ter protegido melhor o presidente. Essas motivações são praticamente um clichê em protagonistas de filmes desse tipo. No entanto, como o filme mostra mais diante, a personalidade de Frank parece ser um pouco mais complexa.
SALA DE JANTAR - NOITE
[A refeição foi devorada com entusiasmo. Fletcher está agarrado a uma coxa de frango, o rosto coberto de migalhas e gordura. Rachel balança a cabeça, rindo.]
HERB: ... E eu nunca bati nele. Nunca. Até hoje. [ele olha para Frank] Não é verdade [olha para Rachel] Isso é muito incomum pro meu povo. E o que acontece? Aos dez anos, ele reclamou disso! Você acredita nisso?
[…]
HERB (…) Enfim, ele tinha dez anos e acabado de começar a jogar futebol americano com contato. Ele chega pra mim e diz que tem medo de tomar pancadas, entendeu? E acha que é porque eu nunca bati nele. ‘Por que você nunca me bate?’ ele me pergunta!
[…]
HERB (O.S.) Ele superou isso. Virou um baita wide receiver. Não aguentava sentir medo. Quando encontrava alguma coisa que o assustava, ele fazia até o medo passar.
Nesse diálogo aparentemente banal, os espectadores aprendem algo novo sobre Frank. Ao contrário da maioria das pessoas, que preferem fugir de seus medos, ele tentava superá-los desafiando-os. Se isso é verdade, então é plausível imaginarmos que as motivações que levaram Frank Farmer escolher sua ocupação podem ser mais profundas do que as hipóteses levantadas até agora. Talvez ele tenha escolhido ser guarda-costas porque queria enfrentar algum medo (da mesma forma que ele fez quando tinha dez anos). Mas qual seria esse medo?
Não estar lá
O que prometia ser uma estadia tranquila na casa de Herb acabou se tornando um pesadelo. De alguma forma, o maníaco descobriu o local em que Frank e Rachel se esconderam. Frank e seu pai conseguem salvar Rachel e Fletcher, mas a irmã de Rachel, Nicki acaba morrendo. Ao voltarem para a casa de Rachel, à noite, depois do funeral de sua irmã, Fletcher vai até a cozinha para tomar um suco de laranja e acaba encontrando Frank. O diálogo entre o garoto e o guarda-costas é a peça final do quebra-cabeça:
INT. SALA DE ESTAR - NOITE
[Está bem escuro na sala de estar. Frank está sentado sozinho, completamente imóvel, em uma das poltronas grandes e confortáveis. A garrafa de vodca está sobre a mesa ao lado dele. Ele encara o vazio. Uma voz suave rompe o silêncio da escuridão.]
FLETCHER: Você tá bem, Frank?
[Frank percebe a pequena presença de Fletcher parado ao lado da grande poltrona. Ele não o encara diretamente.]
FRANK: Tô sim, Fletcher. E você?
FLETCHER: Eu não consegui dormir... Foi tão assustador, só de pensar nisso...
[Fletcher olha para Frank.]
FLETCHER: E você? Você tá com medo, Frank?
FRANK: Estou, Fletcher. Estou sim.
[Frank coloca a mão gentilmente sobre a cabeça de Fletcher, mas não olha para ele.]
FRANK: Todo mundo tem medo de alguma coisa, Fletcher. É assim que a gente sabe que algo importa pra gente... Quando a gente tem medo de perder.
FLETCHER: Do que você tem medo?
FRANK: Acho que você devia tentar voltar a dormir agora, campeão.
FLETCHER: Me conta, Frank, por favor. É do homem que matou a Nicki? Você tem medo dele?
[Finalmente, Frank se vira e olha para Fletcher. Frank está bastante abalado. Ele balança a cabeça, dizendo "não". Ele percebe que esse tipo de medo nunca tinha passado pela sua cabeça, e perceber isso o mergulha de volta em seus pensamentos.]
FLETCHER: Então de quê? Do que você tem medo?
[Frank já não tem mais forças pra resistir. Ele deixa a mão cair, afastando-a de Fletcher.]
FRANK: Eu tenho medo... de não estar lá...
***
Quando eu era pequeno, eu tinha muito medo de morrer. Não que esse medo tenha desaparecido totalmente hoje em dia, mas ele era particularmente aterrorizante quando eu era pequeno. A sensação aparecia especialmente à noite, quando eu estava deitado, no meu quarto, no escuro. Ela surgia de repente, entre pensamentos banais a respeito dos acontecimentos do dia. A ideia da absoluta inevitabilidade do fim. A vida na qual você está confortavelmente instalado, todos os seus pensamentos, todos os pensamentos de pensamentos, literalmente tudo o que você é capaz de experimentar e conhecer, tem um prazo de validade inexorável. Absolutamente inexorável. Não importa se a morte representa a separação do composto hilemórfico de corpo e alma imortal, ou se ela é o fim absoluto. O fato é que ela marca um ponto final e, portanto, existe para cada um de nós um futuro que é inatingível. Um futuro para além de uma barreira intransponível no qual você não poderá mais se projetar. Em algum momento, você não vai estar lá6.
No diálogo com Fletcher, descobrimos que Frank tinha esse mesmo medo da morte. Observe que “não estar lá” tem um duplo sentido. Ele pode significar “não estar lá para proteger seus clientes” e “não estar lá” no sentido de não estar mais vivo. No entanto, o segundo sentido é o único consegue explicar todos os outros fatos que aprendemos sobre Frank. Ele, segundo seu pai, “não aguentava sentir medo. Quando encontrava alguma coisa que o assustava, ele fazia até o medo passar”, e por isso escolheu uma das profissões onde o risco de morte é real. Ainda, segundo seu pai, ele não superou o fato de não estar na segurança do presidente no dia em que ele sofreu o atentado, pois ele estava no funeral de sua mãe, ou seja, naquele dia, não só ele perdeu a oportunidade de enfrentar a morte, como teve de vivenciá-la através da mãe. Por fim, há também o diálogo entre ele e Rachel sobre o protagonista do filme Yojimbo. “Há uma grande diferença entre querer morrer e não ter medo da morte”, diz Frank, e Rachel responde: “E porque ele não tinha medo da morte, ele era invencível?”. Frank viu esse filme sessenta e duas vezes. Um filme sobre um homem que não temia a morte. Frank Farmer queria se tornar Sanjuro (o protagonista de seu filme favorito) e para isso ele precisava enfrentar a morte sempre que possível, mas, até agora, essa oportunidade ainda não havia aparecido.
Salmo 23
"Se alguém está disposto a trocar a própria vida por uma morte, nada pode detê-lo."
— Frank Farmer
Depois do luto pela perda da irmã, Rachel conversa com Frank sobre a ameaça que ainda paira sobre ela. O assassino da irmã não se daria por satisfeito que Rachel estivesse morta. A atriz considera que um novo ataque poderia acontecer em um evento especial — a premiação dos Oscar. Ela estava concorrendo ao prêmio e iria apresentar uma categoria. Essa exposição em um lugar público, com milhares de pessoas estranhas em volta ofereceria boas oportunidades para um assassino. Frank lembra a artista de que ir a premiação será muito perigoso, mas ela insiste e ele acaba concordando. “Então... eu vou lá ver se ganho um Oscar. E não vou me preocupar nem um pouco. Porque eu tenho você pra me proteger.”, conclui Rachel.
Frank estava correto e, de fato, o assassino vê na cerimônia a oportunidade perfeita para matar Rachel. Depois de uma sequência icônica, intercalando o glamour dos Oscars de antigamente com as cenas de suspense e ação, a tensão se resolve com o assassino finalmente atirando na direção de Rachel. Frank, no entanto, pula na frente da atriz e é ele quem recebe os tiros. Depois de grande comoção no palco, o assassino ainda tenta mais uma vez matar Rachel, mas, dessa vez, Frank, mesmo ferido, consegue neutralizar definitivamente a ameaça.
[O rosto de Frank Farmer. Triste e exausto. Sua guarda finalmente abaixou. Nada mais pode acontecer. Ele lentamente abaixa a arma, fecha os olhos e deixa a cabeça cair sobre o peito.]
***
No fim, Frank sobrevive aos ferimentos. Ele reencontra Rachel, mas dessa vez apenas para se despedir, afinal, o filme não é sobre o casal, e sim sobre Frank. E agora? O arco de Frank está completo? Ele superou o medo da morte? A resposta para essas perguntas aparece na cena final: Frank reaparece, dessa vez como guarda-costas de um deputado que está prestes a fazer um discurso, mas, antes dele, um pastor presbiteriano inicia o evento com uma benção inicial. As últimas palavras da benção (e do filme) são: “Pois sabemos em nossos corações que, mesmo que andemos pelo vale da sombra da morte… Tu estás conosco... nos guiando e protegendo. Amém.”, claramente remetendo ao famoso Salmo 23.
A citação do Salmo é mais interessante não pela parte que aparece, mas pela parte que é deliberadamente omitida. No Salmo, o trecho “mesmo que andemos pelo vale da sombra da morte” é seguido por “eu não temerei mal algum”. Ou seja, a prece do reverendo nos indica que Frank finalmente superou o seu grande medo, o medo de andar pelo vale da morte. Para superá-lo, Frank estava disposto a dar sua vida não por uma morte (como o vilão do filme), mas pela vida do próximo. Assim, nosso herói se tornou invencível como o personagem do seu filme favorito e Lawrence Kasdan conclui um roteiro cinematográfico quase perfeito sobre “um homem disposto a morrer por um salário”.
[MUSIC CUE: “I Will Always Love You” by Whitney Houston]
Enquanto eu escrevo este artigo, I Will Always Love You foi reproduzida 2,8 bilhões de vezes no Youtube e I Have Nothing, a segunda faixa da trilha, modestas 1,2 bilhões de vezes.
Bundling é uma estratégia de discriminação de preço onde a empresa vende diversos serviços ou produtos em uma única cesta por um único preço. Ao invés de vender Excel apenas para quem quer pagar um preço alto por Excel, e vender o Word por um preço alto para quem quer pagar um preço alto pelo Word, é mais lucrativo vender o Excel e o Word juntos por um único preço médio. Assim você consegue vender muito mais Excel e Word. Essa prática é muito comum em setores em que o custo marginal é baixo e o custo fixo (investimentos iniciais) são altos (como é o caso do desenvolvimento de um software com Word ou Excel). O mesmo fenômeno explica por que a televisão por assinatura não te vende apenas os canais de esporte — você precisa comprar o GNT e a Universal. Um único preço médio que, em teoria, deveria ser uma média ponderada da disposição a pagar da população interessada. Como observou Alex Tabarrok, Bundling também funciona muito bem em blockbusters. Filmes que gastam milhões para serem feitos precisam ter de tudo um pouco: ação, romance, atores famosos, comédia, suspense etc.
Ele foi o primeiro a perceber que o salário nunca seria o mesmo entre as diferentes ocupações, o que é estranho para um economista, porque, em tese, todos os salários deveriam ser iguais, pelo menos em equilíbrio, afinal ninguém vai trabalhar por mil reais em lugar sabendo que ele pode ganhar dois mil em outro. Segundo Smith, o que explica o fato de ocupações que poderiam ser desempenhadas pelo mesmo grupo de pessoas terem salários diferentes é, por exemplo, “as dificuldades, a limpeza ou sujeira, a honradez ou desonrardes do trabalho”. Um lixeiro tem um trabalho mais insalubre do que um porteiro de um prédio na Avenida Paulista, por exemplo. Só esse fato já poderia explicar um diferencial de salário entre as duas profissões com o lixeiro ganhando um prêmio pelo fato de lidar com o lixo da cidade. O insight de Adam Smith gerou o que o ramo da economia chamada Economia do Trabalho chama de “Theory of Compensating Wage Differentials”.
Aliás, essa também uma parte importante da teoria do diferencial compensatório de salários: Trabalhar em um escritório com vista para o mar deve ser melhor do que trabalhar em um porão e, portanto, as pessoas deveriam estar dispostas a receber menos salário para ficar de frente para o mar. Considerando “amenidades” mais salário, no entanto, os dois empregos, se forem idênticos em todo resto, deveriam dar o mesmo retorno.
Não é preciso ser um grande gênio militar para entender que ele provavelmente tem razão. Os únicos assaltantes que de fato tentam atacar um carro-forte são os que tem meios e planejamento que garantam uma taxa de sucesso elevada. Além disso, eles têm a iniciativa, eles escolhem a hora e o local do ataque e sabem exatamente o que esperar da equipe de um carro-forte. Aos seguranças, resta apenas reagir ao que os assaltantes passaram meses planejando em detalhes.
Nesses momentos em que o medo se tornava muito presente, obviamente, eu corria para o quarto dos meus pais pedindo ajuda, imaginando que eles pudessem fazer alguma coisa a respeito. A vantagem de ter um pai filósofo é que, em certo sentido, ele praticamente é pago para ficar pensando nessas coisas. No entanto, ao invés de falar de teorias filosóficas, ele geralmente contava histórias de alguns mitos antigos como, por exemplo, a história de Gilgamesh. Embora o problema de morrer não fosse resolvido, estranhamente, ouvir a história de um sujeito que deixou a planta da imortalidade ali — jogado num canto para qualquer serpente pegar enquanto ele tomava banho — me acalmava e eu conseguia dormir.
Excelente!