Scott's Tots e a Economia da Educação
"Michael, isso é uma coisa terrível, terrível que você fez."
Pam: Michael, isso é uma coisa terrível, terrível o que você fez.
Michael: Bem...
Pam: É terrível. Simplesmente terrível. E quanto mais você adiar, pior vai ficar.
Michael: (…) Eu fiz algumas promessas vazias na minha vida, mas, sem dúvida, essa foi a mais generosa.
Uma “generosa promessa vazia” é a expressão que define bem o cerne do desconfortável episódio intitulado Scott’s Tots de The Office. O episódio começa com Michael Scott tentando adiar algo inevitável. Há dez anos atrás, ele havia prometido para quinze crianças de uma escola pública que pagaria integralmente a faculdade delas. Você, assim como eu, provavelmente assistiu a uma porção de filmes americanos, e sabe que uma família de classe média dos EUA começa a poupar para a faculdade do filho desde que ele nasce. Isso significa que a promessa feita por Michael era milionária e, obviamente, ele não estava nem perto de ter capacidade de cumpri-la.
No meio do episódio, depois de momentos constrangedores para nós e para Michael, ele, diante de uma sala lotada de alunos, pais e professores cheios daquele sorriso de uma gratidão antecipada, confessa o óbvio:
Michael: Tudo… Tudo bem. Eu vim aqui hoje porque prometi a vocês mensalidade1, e a mensalidade é algo muito estimável. Mas vocês sabem o que é inestimável? É a intuição. Vocês sabem o que é isso? É a capacidade de saber quando algo está prestes a acontecer. Alguém aí tem intuição? Sabe o que vai acontecer a seguir? Ninguém? Ok, vocês vão me fazer dizer. Tudo bem, estou tão orgulhoso de todos vocês. Derrick, e Lefevre, e Ben, e Ayana, e Mikela, e Nikki e Jason, e… me desculpe, ok, eu estou esquecendo seu nome…
Zion: Eu sou Zion, sou o irmão mais novo de Mikela.
Michael: Bem, Zion, não vou pagar sua mensalidade da faculdade. O que me leva ao meu ponto principal, que é que eu não poderei pagar a mensalidade de ninguém. Eu sinto muito.
Evidentemente, após a notícia, o caos reina na sala aula e Michael sai da escola desolado, pois, apesar de tudo, ele até é um bom sujeito2. Na volta para o escritório, o peso da promessa vazia ainda era sentido pelo gerente regional. Ainda no carro, a secretária Erin tenta animá-lo com uma notícia positiva:
Michael: (...) 15 vidas. Eu destruí 15 vidas jovens hoje.
Erin: Não.
Michael: Sim.
(…)
Erin: O diretor me disse que 90% dos Scott's Tot’s estão prestes a se formar, e isso é 35% a mais do que o resto da escola. Então, eu acho que se você não tivesse feito essa promessa, muitos deles teriam desistido. O que é algo para se pensar, eu acho.
Com essa informação, o humor de Michael, e talvez o nosso, melhora. Apesar do choque colossal entre expectativa e realidade, é possível que sua promessa tenha acidentalmente melhorado a vida de pelo menos parte dos jovens, pelo menos com aqueles que mudaram positivamente seu comportamento3. A perspectiva de acessar a universidade estimulou os aluno a não abandonarem o Ensino Médio.
Aliás, por que terminar o Ensino Médio?
Você entra em uma barbearia para cortar o cabelo e é recebido pelo barbeiro, o qual lhe instrui a sentar na cadeira do meio. Depois de vestir o avental para evitar que cabelos caiam na roupa, você explica ao barbeiro como quer o corte e ele começa o serviço. Lá pelas tantas, no meio do corte, o barbeiro explica que vai precisar “sair mais cedo”, mas que não é para você se preocupar, pois ele retomará o corte na semana que vem. Animado ao ouvir isso, você tira o avental e, feliz, porque o corte terminou mais cedo, se arruma rapidamente para sair apenas com a parte de trás do cabelo aparada. Algo assim nunca aconteceu com vocês? Pois é, nem comigo. O barbeiro nunca fez algo do tipo e, se tivesse feito, eu jamais teria ficado feliz com isso. Entretanto, admita, leitor: Na juventude, você ficava feliz quando o professor encerrava a aula mais cedo, não? Pois é, curioso… O que explica a diferença entre o barbeiro e o professor?
A diferença é que o valor do corte de cabelo está no corte em si, ao passo que o valor de uma educação é uma soma de dois componentes: o conhecimento adquirido e o diploma de conclusão. O primeiro componente é, em tese, o motivo de existirem instituições de ensino e professores: transmitir conhecimentos sobre tópicos específicos e desenvolver competências relativas a eles. O segundo é um efeito colateral, resultado de um problema informacional. Quando você vai falar com alguém que se diz médico, principalmente se ele vestir um jaleco branco, é muito difícil saber se ele realmente entende de medicina ou não. Grosso modo, o diploma é um sinal que, sob certas condições, é capaz de separar as pessoas de acordo com suas habilidades. Esse sinal, portanto, tem valor mesmo que você não tenha aprendido nada no curso.
Por esse motivo, quando o professor encerra a aula mais cedo, você não fica triste, pois você já ganhou presença, e agora falta um dia a menos para você ganhar seu “sinal”, digo, seu diploma. Claro, você provavelmente não ficaria feliz se isso acontecesse o tempo todo, afinal, espera-se que alguma coisa seja ensinada no curso, mas você não fica triste se isso acontecer ocasionalmente, principalmente se você achar aquela matéria em particular uma perda de tempo. O curso tem que ser exigente o bastante para que, ao final dele, o diploma tenha algum significado, isto é, tenha conseguido distingui-lo de alguém que não tem diploma. Ah, e seria bom se ele te ensinasse algo também, afinal, não queremos ser um Brás Cubas que, ao receber seu diploma, sentiu-se ao mesmo tempo “enganado e orgulhoso”.
Mas qual a relação disso com o Ensino Médio? Bem, a conclusão do Ensino Médio tem esses dois efeitos também. Por um lado, é possível que você realmente aprenda coisas valiosas para sua vida como, por exemplo, análise combinatória e geometria espacial. Por outro lado, o diploma também é um sinal para quem não tem tempo de “conhecer a sua história” profundamente. Se você completou o Ensino Médio, isso já significa muito. Isso significa que você sabe cumprir algumas regras, tem algum senso mínimo de responsabilidade e etc. Além disso, com o diploma você pode tentar ingressar na universidade, é claro.
Um problema de demanda
Em geral, a taxa de abandono no Ensino Médio em escolas públicas é alta. Os motivos para isso são vários, mas posso destacar principalmente dois. Quando a escola oferece um ensino ruim, os pais e alunos tendem a perceber isso e, como consequência, o incentivo de frequentá-la cai consideravelmente. A qualidade afeta diretamente a decisão de frequentar a escola, pois elimina ou enfraquece o primeiro motivo para adquirir uma educação formal: educar-se. “Tudo bem”, o leitor pode pensar, pois ainda existe o segundo motivo — obter um certificado valioso. O problema aqui é que, para boa parte dos alunos da escola pública, o acesso ao ensino superior é difícil e isso já reduz substancialmente a utilidade do diploma de Ensino Médio.
Para muitas famílias, os dois problemas — qualidade e dificuldade de acesso a universidade — tornam pouco atraente a conclusão do Ensino Médio. Pior ainda, há uma complementariedade entre os problemas. A percepção do aluno sobre a qualidade da escola afeta negativamente a percepção dele sobre suas chances de entrar na universidade. As duas percepções combinadas reduzem o incentivo do aluno estudar, o que reduz ainda mais a percepção dele sobre a capacidade de acessar o Ensino Superior. Esse círculo vicioso também afeta os pais, pois agora eles têm menos interesse em cobrar a escola, o que, por sua vez, não ajuda a melhorar a qualidade dela. O resultado é que as aulas sobre química orgânica do colégio não conseguem competir com o mercado de trabalho precoce e, portanto, o aluno acaba abandonado o Ensino Médio.
Só vou para a escola se me pagarem
Uma forma simples de incentivar estudantes a continuarem na escola é pagá-los para fazerem isso. Nesses últimos trinta anos, foi justamente isso que diversos governos fizeram quando criaram programas de transferência de renda condicional. Um exemplo desse tipo de programa é o Bolsa Escola, criado em 2001 pelo governo federal e que pagava um valor para as famílias cujos filhos tivessem uma frequência escolar mínima. Mais tarde, esse programa seria incorporado ao Bolsa Família.
Esse tipo de programa funciona para aumentar a frequência escolar, principalmente no Ensino Fundamental, quando os pais têm mais controle sobre ela. No Ensino Médio, no entanto, o estudante tem mais autonomia e o custo de oportunidade de frequentar a escola é maior. Além disso, as perspectivas de ingressar ou não na universidade também importam mais para o aluno nesse momento. Uma coisa é sua motivação para terminar o Ensino Médio sabendo que você, muito provavelmente, irá ingressar no Ensino Superior (a realidade para a maioria dos jovens de classes mais altas), outra coisa completamente diferente é uma situação em que o ensino formal vai terminar ali mesmo. As expectativas a esse respeito importam.
Naturalmente, a expectativa de entrar na universidade depende não só da simples conclusão do Ensino Médio. O acesso ao ensino universitário exige dinheiro. Boas universidades públicas são difíceis de entrar mesmo com a presença de cotas para estudantes de escolas públicas, e as boas instituições privadas são caras. Além disso, sem recursos financeiros, também se restringem geograficamente as opções para o estudante. Por exemplo, sair de Porto Alegre para estudar em Manaus envolvem certos custos que podem ser proibitivos para os indivíduos sem uma poupança formada. O estudante, portanto, precisa de economias, precisa de poupança. Quem poderia fazer isso para ele são os seus pais. O problema é que, em geral, para famílias muito pobres, formar uma poupança é um desafio grande. Se é assim mesmo, então as políticas de incentivo deveriam ser modificadas no sentido de auxiliar os pais a formar essa poupança.
Colombia’s Tots
O economista Felipe Barrera-Osorio e seus coautores investigaram o que acontece quando programas tradicionais de transferência de renda são modificados para auxiliar a criação de uma poupança. Em 2005, a cidade de Bogotá na Colômbia criou o programa chamado “Subsídios Condicionados para a Frequência Escolar”. Assim como a maioria dos programa desse tipo, o objetivo era aumentar a frequência escolar e reduzir a taxa de abandono. A diferença é que o idealizador do programa queria saber o que aconteceria se, ao invés de pagar uma bolsa todo mês para as famílias (como os programas tradicionais faziam), parte do recurso fosse destinado a uma poupança para o aluno. Para atingir esse objetivo, ele fez um experimento. Foram criadas três modalidades de pagamento das bolsa de incentivo à frequência escolar. Uma delas era a forma “tradicional”, onde os pagamentos são feitos na sua totalidade a cada dois meses, ou seja, eram pagamentos de curto prazo. Em outra modalidade, as famílias receberiam dois terços do valor da bolsa bimestralmente e o restante seria depositado em uma conta individual que rende juros. O valor dessa conta poderia ser sacado pelo aluno apenas um ano depois de ter terminado o Ensino Médio, ou assim que entrasse no ensino terciário (o que viesse primeiro).
A importância do experimento é clara. Existem um dilema entre pagar mais agora ou destinar parte dos recursos para uma poupança. Na modalidade tradicional, o valor recebido no curto prazo é maior do que aquele na modalidade com poupança. A redução no valor que é pago no curto prazo pode desincentivar a frequência escolar, pois os pais têm um benefício imediato menor. Por exemplo, se o benefício pago bimestralmente for muito pequeno, talvez o estudante saia do colégio para trabalhar. A dúvida que o experimento ajudou a resolver, portanto, era saber se o problema de escassez de recursos no curto prazo dominava o problema de geração de poupança.
O resultado do experimento foi interessante. Os estudantes que recebiam parte do recurso no presente e parte em forma de poupança não tiveram uma frequência escolar inferior ao do grupo tradicional. Além disso, assim como os Scott’s Tots, os participantes da nova modalidade também tiveram uma taxa de rematricula no Ensino Médio maior e, o que é mais interessante, uma taxa de matrícula no ensino terciário quase 50% maior. A criação dessa poupança, portanto, atingiu seus objetivos sem gerar grandes efeitos colaterais. Segundo os autores do estudo, o efeito foi mais pronunciado justamente nos alunos de renda mais baixa e naqueles cujas taxas de abandono costumavam ser maiores.
Lições para o Brasil
No Brasil, existem algumas tentativas de oferecer benefícios diferenciados aos estudantes do Ensino Médio. Nos anos 2000, o governo de Minas Gerais criou o “Poupança Jovem”, que depositava R$ 3.000 na conta dos jovens da escola pública estadual que concluíssem o Ensino Médio. Outro programa parecido é o programa “Poupança Escola” de Niterói, no RJ. Mais recentemente, em Porto Alegre, foi aprovada a lei do programa “Bolsa Fica na Escola”, o qual cria uma bolsa de incentivo à frequência escolar, em que uma parte do valor é poupado para ser sacado no futuro. Essa bolsa é paga enquanto o aluno estiver na rede pública municipal do Ensino Fundamental e o recurso destinado à poupança fica rendendo juros, podendo ser sacado apenas quando o aluno completa o último ano do Ensino Médio.
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A época em que normalmente se cursa o Ensino Médio é um momento crítico na vida de todo jovem, especialmente para o jovem sem recursos, onde a margem de tolerância para erros é, infelizmente, muito menor. Suas perspectivas e percepções do futuro, equivocadas ou não, afetam seu comportamento no presente. Elas impactam seu esforço e dedicação nos estudos, seu comportamento com colegas e professores, e sua decisão de abandonar a escola para entrar precocemente no mercado de trabalho em tempo integral. As políticas públicas de incentivo aos estudos precisam levar isso em conta para que sejam mais eficazes em atingir seus objetivos. Evidentemente, isso deve ser feito com uma responsabilidade infinitamente maior do que a de Michael Scott.
Mensalidades em inglês é tuition. Michael Scott teve tempo para pensar no trocadilho entre tuition e intuition.
Michael: […] Eu queria pagar pela sua educação. Eu realmente queria. Era o meu sonho. Algumas pessoas têm sonhos maus, algumas pessoas têm sonhos egoístas ou sonhos eróticos. Meu sonho estava no lugar certo.
O desfecho é relativamente feliz, pois estamos falando do The Office americano e, portanto, um lugar onde ainda há esperança (ao contrário da versão britânica). No entanto, temos que nos perguntar sobre o que aconteceu com os jovens que já iriam terminar o Ensino Médio e que, contando com o auxílio da “Michael Scott Foundation”, não se preocuparam em procurar outras formas de financiamento.