O Politicamente Correto e a Sociologia Normativa de Michael Scott
Faça sempre a escolha mais "progressista"
No começo do episódio “The Convict” do seriado The Office, vemos o gerente Michael Scott, a chefe da contabilidade Angela, o contador Kevin e a recepcionista Pam em uma conversa pelo telefone com a vice-presidente de vendas da empresa, Jan Levinson. Angela pergunta para a chefe de Michael a respeito de uma restituição tributária recebida do “Programa Federal de Oportunidade de Trabalho”. Jan explica que esse cheque é um benefício concedido pelo governo federal para empresas que contratam ex-presidiários.
A chefe da contabilidade não conhecia esse benefício, porque ele só começou a aparecer nas informações financeiras após a filial de Stanford ter sido absorvida pela filial de Scranton, gerenciada por Michael. Josh, o gerente da filial extinta, tinha se beneficiado desse programa ao contratar um ex-presidiário. O problema para Angela e demais é que eles não sabiam qual dos novos colegas vindos de Stanford era o condenado reformado:
Angela: “Jan, qual desses novos empregados é um criminoso?”
Jan: “Uh, condenado reformado, e, uh, eu não tenho certeza. Mas espere, deixe eu ver o e-mail do RH, fique na linha.”
Pam: [cochichando] “Quem será?”
Micheal: “Hannah?”
Kevin e Angela: “Hmm.”
Kevin: “Andy.”
Angela: “Andy?”
Kevin: “Hmm. Martin?”
Michael: “Kuuuuuh… você é tão racista.”
— The Convict, Episódio 09 da 2ª Temporada de The Office
Michael Scott acusou Kevin de ser racista, porque ele sugeriu que talvez Martin Nash poderia ser o ex-presidiário contratado. Dos três empregados de Stanford que ainda restavam na empresa, apenas Martin era negro. Isso torna Kevin um racista? É uma boa pergunta. Um racista certamente acusaria (ao menos em pensamento) Martin de ser “criminoso” pelo simples fato dele ser de uma cor diferente. As opiniões de um racista tender a ser equivalentes as horas de um relógio quebrado. Ela sempre será a mesma e, acidentalmente, até pode estar certa, no sentido de que, em algum momento, o criminoso pode ser negro de fato, mas não será um “acerto” e sim puro acaso. Nesse sentido, trata-se de uma opinião que não é informativa para descrever a realidade.
O fato é que os nomes de Hannah e Andy já haviam sido levantados na conversa, ou seja, restava apenas Martin. Além disso, Kevin mencionou o nome de Andy antes de mencionar Martin. Sem informações a priori, qualquer um dos três poderia ser quem eles procuravam, inclusive Martin. Portanto, cogitá-lo seria uma possibilidade mesmo para uma pessoa que não seja racista. Isso significa que Kevin não é racista? Não necessariamente. Na verdade, nós não fazemos a menor ideia. O que nós sabemos é que existem racistas no mundo e boa parte deles não revela essa característica publicamente. Afinal, essa é uma posição extremamente impopular. Há um incentivo, portanto, em manter esse traço individual negativo em sigilo. Um Kevin racista poderia justamente ter tentado se disfarçar de alguém sem preconceito ao falar de Martin por último.
Esse problema informacional não gera problemas apenas para o Kevin. Ela gera um problema para todos nós. Afinal, se existem racistas ocultos, então existe a possibilidade das pessoas acharem que você é um deles. Isso é péssimo, pois ninguém quer ser chamado de racista ou ter seu nome associado com isso. Por isso, cabe a pergunta: O que você estaria disposto a fazer para não pensarem que você é um racista? Você estaria disposto a mentir?
O Politicamente Correto
Em um artigo famoso, o economista Stephen Morris defende que esse problema informacional é a origem do “Politicamente Correto”. A história que ele conta é mais ou menos assim: Considere uma situação em que uma comissão votará sobre um projeto de cotas raciais, e seus membros não tem uma opinião formada sobre o assunto. Suponha que você é um especialista sobre programas sociais e essa comissão quer saber a sua opinião sobre o tema. Imagine também que todos os envolvidos nessa história têm uma preocupação legítima e sincera com o bem comum, de tal sorte que só estão interessados em políticas que realmente funcionem. A diferença entre você (que é especialista) e a comissão é que, como você é melhor informado sobre o assunto, a sua opinião tem maior chance de estar correta, isto é, de corresponder a realidade.
Digamos que, depois de consultar os artigos científicos, a sua opinião técnica é que uma política de cotas raciais não é a melhor maneira de combater o racismo. Você avisa a comissão que terminou sua pesquisa e ela o convida para falar sobre o tema. O que você diria no seu depoimento? Assim como os membros da comissão, você quer que a melhor política seja implementada, então, por um lado, você tem um bom motivo para falar a verdade. Simples, não? Nem tanto. Afinal, existem racistas no mundo e eles, pelo menos em tese, são contra cotas raciais. Embora você saiba que não pertence a esse grupo, os membros da comissão não tem a mesma certeza. Para eles, existe chance de que você seja um.
Nesse contexto de incerteza, existem dois motivos que poderiam levar você a mentir. Ambos envolvem reputação, mas de jeitos diferentes. O jeito mais simples e direito é quando você está preocupado com sua reputação em si mesma. Expressar uma opinião que aumente a chance de você ser um racista enrustido prejudica a sua reputação perante um grupo específico. Se você está mais preocupado com a sua reputação, então você vai mentir mesmo sabendo que uma política errada será implementada. Esse é o preço para ser bem aceito no grupo. A segunda forma que a reputação faz você mentir é indireta. Você não está preocupado com a reputação em si, mas, sim, apenas de forma instrumental, pois uma boa reputação torna você uma pessoa mais influente. Quanto melhor ela for, mais peso terá a sua opinião na hora das decisões. Ou seja, a sua reputação importa para o futuro, no momento que quiserem saber novamente a sua opinião. Assim, faz sentido mentir agora sobre a política de cotas dizendo que ela é boa, desde que isso aumente sua reputação, isto é, desde que isso diminua a chance de você ser racista. Isso tem um preço, claro. O custo de mentir hoje para construir sua reputação de amanhã é que a política implementada hoje será pior.
A implicação mais interessante do artigo é que o discurso politicamente correto é mais frequente nos temas quem têm pouca importância relativa. Nesses casos, o benefício de falar a verdade é baixo, e vale mais a penas usar essa oportunidade para melhorar sua reputação. Imagine um mundo em que todos se comportam assim. Um mundo em que se multiplicam discursos sem conteúdo verdadeiro algum, e que têm apenas a função de sinalizar uma boa reputação de quem o profere. Tente imaginar esse mundo, leitor. Tente.
A Sociologia Normativa
Para a infelicidade de Michael, o segundo palpite de Kevin estava correto. Era Martin o empregado que havia cumprido pena por um crime do “colarinho branco”. Em um dos melhores depoimentos do seriado, Michael fala o seguinte para o falso documentarista:
Michael: Por que o condenado tinha que ser um cara negro? É tão estereotipado. Eu só desejaria que Josh tivesse feito uma escolha mais progressista. Tipo… um cara branco… que foi para a cadeia por… poluir o lago de um cara negro.
Correndo o risco de explicar a piada, precisamos lembrar o contexto do seriado. The Office é um pseudodocumentário e as cenas que assistimos seriam os registros dos “documentaristas”. Isso significa que, na maioria das ocasiões, o comportamento do Michael é afetado pela presença dos cinegrafistas. Ele sabe que os acontecimentos no escritório farão parte de um programa de televisão, no qual ele se coloca como protagonista. Nessa condição, ele está constantemente preocupado com “a mensagem” que será passada aos espectadores.
Na mente confusa do protagonista, a presença dos documentaristas faz com que ele prefira contratar um ex-presidiário branco e racista do que um ex-presidiário negro, pois o primeiro reforça a mensagem correta de que racistas são pessoas ruins, enquanto o segundo a mensagem incorreta de um estereótipo. O resultado, claro, é absurdo. É uma situação extrema, na qual uma “mensagem” é mais importante do que qualquer coisa. Michael Scott provavelmente não sabia, mas sua lógica tinha nome: Sociologia Normativa.
De acordo com Joseph Heath1, essa expressão foi originalmente utilizada por Robert Nozick em sua obra "Estado, Anarquia e Utopia". Segundo o filósofo, a Sociologia Normativa é “o estudo de quais deveriam ser as causas dos problemas”. Veja, um importante propósito da ciência é investigar a relação causal entre objetos teóricos, os quais, por sua vez, tem correspondências na realidade. Ninguém nunca viu um um “ser humano médio”, mas você gostaria de saber o efeito causal do consumo de ovos na incidência de problemas cardíacos desse sujeito2. Note que, no caso das ciências normais, estamos interessados em saber a causa verdadeira de algo ou, em outras palavras, o que de fato explica a ocorrência de um fenômeno. A Sociologia Normativa é diferente. Ela se preocupa em definir quais são as causas relevantes no momento e então, uma vez definidas, associá-las aos problemas do mundo. Joseph Heath explica:
“Eu escuto rotineiramente extraordinários poderes causais sendo associados ao “racismo” — afirmações que excedem em muito as evidências disponíveis. Algumas dessas afirmações até podem ser verdade, mas existe um claro estigma moral associado com questionamentos da conexão causal sendo postulada — o que é perverso, uma vez que a questão causal “do que causa o que” deveria ser puramente empírica. Questionar a conexão, no entanto, provavelmente atrairá acusações de tentar “minimizar o racismo”. (…) Também parece haver uma sensação de que, como o racismo é uma coisa incrivelmente ruim, ele também deve causar muitas outras coisas ruins. O que está em jogo aqui é basicamente uma intuição sobre como a ordem moral é organizada, não sobre a ordem causal.”
Para Michael Scott, o ex-presidiário contratado deveria ser um homem branco que poluiu o lago de um homem negro, pois o “racismo de brancos para negros” e a “poluição criminosa do meio ambiente” estão conectados não necessariamente por um nexo causal, mas, sim, moral. Essa “escolha mais progressista”, ao ser exibida no documentário, funciona como um estudo de sociologia normativa, como se fosse uma espécie de trabalho científico que valida não só a existência do racismo, mas também estabelece um nexo emocional com a poluição do meio ambiente.
Nesse arcabouço pseudocientífico, onde impressões e sentimentos são o que importam, a pior coisa que você poderia colocar no documentário é um homem negro como ex-condenado, pois, como explicou Joseph Heath, isso será interpretado erroneamente como uma “minimização do racismo”. Para evitar essa falha grave, todas as ações do documentarista devem ser colocadas sob um prisma publicitário, como se o “observador ideal” trabalhasse no departamento de marketing da Avon ou do Itaú. Ele deve fazer perguntas do tipo: “a quem esse estudo vai servir?” ou “quem ou o que vai ser validado com ele?”.
Uma crise nas ciências sociais aplicadas
Hoje, as investigações dos “temas que deveriam ser a causa dos problemas” prosperam nas ciências sociais. Há uma preocupação cada vez maior com estigmas morais do que com ordem causal. Veja, eu serei o último a impedir alguém de fazer um estudo sobre a reação dos humanos à performance queer e cultura do estupro dos cachorros no parque3. Os adeptos da Sociologia Normativa são livres para alocar seus esforços como quiserem. O problema é quando a febre passa a contaminar os demais pesquisadores ao gerar os incentivos errados para a pesquisa.
No contexto da Sociologia Normativa, os trabalhos que identificam as causas “erradas” são acusados de minimizarem os “verdadeiros problemas” da sociedade (isto é, aqueles problemas escolhidos pelos adeptos dessa doutrina). Sua pesquisa mostra que restrição ao porte de armas no sul dos Estados Unidos aumentou a violência contra a população afro-americana? Você está minimizando o problema gerado pela liberação das armas de fogo! Parte do diferencial de salário observado entre homens e mulheres se deve a comportamentos diferentes entre os sexos? Você está minimizando o problema do preconceito contra a mulher e do machismo no mercado de trabalho! Essas acusações, combinadas com o problema informacional do “politicamente correto”, acabam gerando um custo reputacional para o cientista social. Se a sua pesquisa não ressalta a importância dos temas mais urgentes na ordem moral estabelecida, então ela não serve para nada ou, na pior das hipóteses, ela está ajudando as “causas erradas”. Ora, se a sua pesquisa está contribuindo para essas causas erradas, talvez você seja um adepto delas. Pronto. Voltamos para o trabalho do Morris, no qual é racional mentir ou omitir para salvar sua reputação.
Além dos incentivos negativos, também existem os positivos. Estudos que reforcem causas “politicamente corretas” dos problemas são os que ganharão destaque. Isso é especialmente problemático quando se estabelece como único critério de validade científica o uso de um método. Como diz Eric Voegelin:
“O uso do método como critério das ciências abole sua relevância teórica. Como consequência, todas proposições acerca de fatos serão promovidas a dignidade de ciência, independente da sua relevância, desde que elas sejam resultado do uso correto do método. Como o oceano de fatos é infinito, a expansão prodigiosa da ciência no sentido sociológico se torna possível, dando emprego a “técnicos cientistas” e levando a uma fantástica acumulação de conhecimentos irrelevantes através de enormes “projetos de pesquisa” cuja característica mais interessante é o gasto quantificável que foi alocado na sua produção.”
Estudos científicos cujos objetos são absolutamente irrelevante, mas que usam um método adequado, ganham uma relevância desproporcional se suas conclusões ajudam a reforçar o nexo causal politicamente correto.
Más notícias
Os problemas do Politicamente Correto e da Sociologia Normativa parecem ser inevitáveis. Nas ciências sociais, a linha que divide o agente do observador é tênue. A velocidade com que a maçã se desloca, e a trajetória que ela percorre quando é arremessada, dificilmente podem ser extrapoladas para algum significado moral ou político. O mesmo não se pode dizer a respeito de, por exemplo, um estudo sobre “ “desigualdade de renda”. O peso valorativo negativo da expressão “desigualdade de renda” quase que exige que ela esteja na origem de todos os problemas sociais e econômicos. Estudos que encontrem outros culpados vão causar suspeitas, as quais precisam ser dirimidas com longas ressalvas ao longo do texto.
Embora inevitável, acredito que esse problema possa ser minimizado. O grande problema aqui me parece a falta de confiança. Em um primeiro nível, temos o problema da baixa confiança interpessoal, pois o artigo do Morris só faz sentido se existem dúvidas sobre a reputação do especialista. Em um nível mais profundo, no entanto, há também um grande problema de desconfiança nas próprias ciências sociais. A partir da segunda metade do século XX, prevalece uma tese falsa de que não existem verdades e que todo discurso (científico ou não) serve para justificar uma hierarquia de poder. Quem nos contam essa novidade foram os próprios acadêmicos e intelectuais, é claro. Eles são os “descontruidores” oficiais das verdades oficiais. O efeito disso é que — pasmem! — eles acabaram ficando com o poder. Ou seja, a desconstrução dos supostos discursos de justificação acabou justificando o aumento do poder de quem os desconstruiu. Talvez essa seja a origem do Politicamente Correto e da Sociologia Normativa. Para combatê-las é necessário resgatar o verdadeiro propósito da ciência: a busca sincera pela verdade.
Conheci esse conceito há tempos atrás pelo blog do Tyler Cowen.
O veredito ainda não foi anunciado nesse caso. O júri vai e volta toda hora nesses últimos quarenta anos.